quarta-feira, outubro 27, 2004

As teias da aranha

Sonhava maravilhosamente, recordando na perfeição cada pormenor da tarde anterior bem passada, o corpo da Elsa, o seu cheiro e o seu sabor. Fui subitamente acordado, a minha doce Elsa ainda dormia a meu lado, mas o telemóvel estava a tocar. Era o Alexandre, seria bom que este gajo tivesse uma boa desculpa para me acordar numa madrugada de segunda-feira.
Estou, que queres? – perguntei-lhe, ainda ensonado.
Epah, estou a foder! Estou a foder! – repetia-se ele.
Andaste a beber?
A foder! Tum tum tum, todo lá dentro!
– dizia o Alexandre, todo contente.
A sério? Fico feliz por ti, mas agora deixa-me dormir. Está bem? – começava a despachá-lo.
Estou a foder...
Desliguei a chamada sem que ele acabasse o que estava a dizer, desliguei a chamada e voltei a adormecer.
Os cinco dias seguintes foram preenchidos com aulas. Nessa semana, poucas vezes vi o Alexandre e o Luizinho na faculdade, eles andavam desaparecidos. Esperava que não tivesse nada a ver com o mistério criado no Domingo passado, na chegada ao Aeroporto.
Iria haver uma festa nesta sexta-feira de noite, na discoteca Kapital. Uma pequena comemoração para alunos do ISEL e seus convidados. Certamente os iria ver nessa festa, escutei-os durante a semana comentarem com entusiasmo a festa que se adivinhava, poderia então esclarecer com eles o que se estava a passar.
Cheguei a Lisboa, estacionei o carro em Santos e fui para a Kapital com a Elsa. Trouxe também o Alexandre de carro connosco, era quase meia-noite quando entrámos na discoteca. O Luizinho recusou a minha boleia e disse que chegaria mais tarde à festa, na companhia de uma amiga. Estava curioso para ver quem era, de um momento para o outro, tanto o Alexandre como o Luizinho, dois gajos encalhados, arranjaram amigas novas e ainda lhes saltavam para cima.
Insisti com o Alexandre para me contar tudo sobre a sua misteriosa amiga colorida e contei com a doçura da Elsa para o obrigar a falar. As minhas suspeitas confirmaram-se, a sua amiga da foda era a Daniela, só esperava que ela não se andasse a aproveitar do rapaz.
Estranhei ela não ter ido com ele à festa...
Alexandre, porque é que a Daniela não veio hoje contigo?
Eu era para não vir e disse-lhe ontem que não vinha. Mas há bocado apeteceu-me ir e liguei-te para me ires buscar.
E não lhe telefonas, afinal vieste à festa?
– perguntou-lhe a Elsa.
Não, a estas horas ela já deve estar a dormir...
Amanhã levanta-se cedo para o trabalho.
– justificou-se ele, engasgando-se com as palavras.
O assunto morreu por ali, entretanto, ligou-me a Diana. Não falava com ela desde a última fuga da sua irmã Patrícia.
João, estou a chegar agora. Onde estás?
A chegar?!
– não saberia onde.
Sim, vou só arrumar o carro. Estás já lá dentro? – perguntou ela.
Estou... mas...
Estava imenso barulho na discoteca, era difícil de me fazer perceber.
Não te oiço bem, mas pelo som parece que sim, até já. – finalizou a Diana, desligando depois a chamada.
Fiquei sem saber onde ela estava e não tive tempo de lhe explicar onde eu estava, mas fiquei com a impressão que ela sabia exactamente onde me encontrava. Estranho, não tínhamos combinado nada para aquela noite.
Minutos depois, entrava a Diana na Kapital e vinha ter connosco, a uns sofás.
Olá, João! Elsa, como estás? – cumprimentou-nos a Diana.
Fiquei contente de a ver na festa, mas não sabia como ela tinha vindo aqui parar.
Obrigado pelo convite de hoje, estava a precisar de me distrair. – disse ela.
Convite? Linda, deves estar a fazer confusão. – interrompi-a.
Sim, convite para estar aqui hoje. Falámos ao telefone esta tarde, como podes não te lembrar?! – acrescentou ela, sorrindo.
Diana, eu não falava contigo desde o mês passado.
Só podes estar a gozar, não é?
Não estou, a sério. Pergunta à Elsa, passámos a tarde juntos e não peguei no telemóvel.
É verdade Diana.
– esclareceu a Elsa, que estava calada até então.
Não estou a perceber nada... – começa a Diana a ficar intrigada, tal como nós.
Bebeu um gole de água e passou em revista no seu telemóvel as últimas chamadas feitas.
Se não foste tu quem falou comigo esta tarde, então quem foi? – acrescentou ela.
De facto era muito estranho, Diana disse-me que essa pessoa tinha a voz igual à minha e fez a maior questão que ela viesse a esta festa, infelizmente a chamada tinha sido feita de um número anónimo.
A festa foi ficando mais concorrido, instantes depois chegava o Luizinho à festa. Perguntei-lhe pela nova amiga, ele disse-me que ela estava no bar com a prima e que vinham ter connosco dentro de pouco tempo.
Trazes logo duas? Muito bem, andas a aprender com o pai. – disse eu, sorrindo.
Ele ficou todo contente e corou ainda mais quando viu as suas amigas aproximarem-se. Não poderia ser! As amigas deste parvo eram a Daniela e a Filipa. Que fariam elas aqui? A Filipa era prima da Daniela? Que confusão, desconhecia agora onde as novidades iriam parar.
O Alexandre voltou da casa de banho e viu o Luizinho agarrado à Daniela, eles não sabiam que ele tinha vindo a esta festa comigo e gerou-se uma enorme discussão. Este sentiu-se traído, ainda por cima por um dos seus melhores amigos. Os gajos pegaram-se à porrada e vieram dois gorilas, disfarçados de seguranças de discoteca, que os meteram na rua. Muita sorte tiveram eles de não terem levado porrada dos seguranças, mas como as coisas acalmaram mal se sentiram postos fora da Kapital, os seguranças cagaram neles.
A Daniela sentiu-se um pouco culpada pela situação e convidou-nos a todos para irmos passar o resto da noite a casa dela, em Cascais. Poderia ser que as coisas se resolvessem a bem entre o Alexandre e o Luizinho, fomos então todos para lá.
A Filipa veio no meu carro, também a Diana aproveitou a boleia e deixou o seu carro perto da Kapital. O Alexandre e o Luizinho foram no carro da Daniela, assim iam falando e resolvendo as coisas. A Filipa não sabia o que me dizer, possivelmente a Daniela não lhe disse que eu estaria naquela festa.
Filipa, no Sábado passado, alguém te pediu que me ligares? – perguntei-lhe directamente.
João... – não disse mais nada.
Podes contar, isto não sai daqui. – voltei a insistir com ela.
A Elsa apercebeu-se que se tinha passado qualquer coisa, mas não disse nada na altura.
Sim. – respondeu a Filipa, a muito custo.
Ela é mesmo tua prima?
Sim, é filha do irmão da minha mãe. – não disse mais nada até Cascais.
Chegámos à casa da Daniela meia hora depois, uma vivenda junto ao mar, vivia-se bem por estes lados. Desconhecia que uma jovem jornalista já pudesse ter uma casa destas, mas esta mansão era dos pais dela, mas como estavam emigrados, era ela quem vivia lá.
O Alexandre e o Luizinho estavam mais calmos um com o outro, no fundo, aperceberam-se que tinham ambos sido usados, só não sabiam para que finalidade. Daniela jogava sujo, tocando no ponto mais fraco dum homem, a sua gaita. Por muito que tentasse, não conseguiria encontrar uma finalidade para ela se dar a tanto trabalho.
Tentámos colocar esses assuntos e intrigas para trás, estávamos ali para descontrair e foi nisso que apostámos. O Alexandre enfrascava-se em álcool, tendo o Luizinho como companheiro de bebida. As quatro meninas andavam pela casa, ouvindo música e falando de qualquer coisa. Roubei a atenção da Elsa e levei-a para o andar de cima, queria estar um pouco mais na intimidade com ela, não sentia o seu corpinho quente há dois dias e não estava a aguentar mais.
Entrámos no primeiro quarto que encontrámos, fechamos a porta e saltámos para cima da enorme cama. Este deveria ser o quarto dos pais da Daniela, estava bem arrumado e dava sinal que não era usado há algum tempo.
Rebolámos na cama e caímos no chão...
Apalpava algo mais que o corpo da Elsa, um objecto debaixo da cama estava a despertar a minha curiosidade. Puxei-o para fora e vimos que era uma arma de fogo, estava carregada. Eu e a Elsa parámos o que estávamos a fazer e ficámos um pouco assustados quando para além da visão da arma, escutámos barulho de vidros a partirem-se, vindos da sala de jantar onde todos estavam.
Saímos do quarto para ir ver o que se passava, foi então que demos de caras com a Daniela, que nos forçou a entrar novamente no quarto. Vinha de arma em punho e mandou-nos subir para cima da cama. Pegou no telemóvel e chamou mais alguém para a casa.
Ficámos em cima da cama a olhar para ela durante quinze minutos, até chegarem três tipos entroncados, vestidos de preto e auriculares. Isto era tudo muito estranho, quem seria esta Daniela na realidade e que merda vinha a ser esta. Nessa espera, com ela sempre de arma na mão apontada a nós, não nos adiantou nada do que se estava a passar, apenas se limitava a ordenar que estivéssemos quietos.
Um dos gajos pegou na Elsa pelo braço, tentei evitar que a magoassem, atirei-me a ele, mas a Daniela imobilizou-me apenas com dois golpes, um pontapé debaixo do queixo e um violento rotativo que me atirou alguns passos para trás.
João! – gritava a Elsa, sendo levada.
Esta Daniela não era nenhuma jornalista, parecia mais uma agente de segurança bem treinada.
Para quem trabalharia ela e o que queriam de mim?
Os outros tipos pegaram em mim e levaram-me para fora da casa, quando desci as escadas até à sala de jantar, tive uma visão desoladora, vi os nossos amigos todos caídos no chão, sem se mexerem, começava a temer o pior.
Não te preocupes, estão apenas a dormir. Eles quando acordarem não se vão lembrar de nada...
Talvez tu não tinhas a mesma sorte.
– disse a Daniela, amedrontando-me.
Os golpes dela deixaram-me dorido, vi a bela Elsa ser metida à força num carro, onde já a Diana se encontrava inconsciente, possivelmente também ela uma vítima do mesmo gás que deixara os meus amigos a dormir dentro da casa.
Meteram-me dentro de outro carro, a Daniela entrou depois e mandou o condutor arrancar.
Seguíamos pela Marginal, no sentido de Cascais a Lisboa, Daniela permanecia em silêncio e os outros dois gajos dentro do Mercedes também nada diziam. Queria sair daqui, pensava que tudo fosse um pesadelo e que acabaria em breve, não poderia estar mais enganado. A jovem agente que me tinha raptado seguia no banco traseiro a meu lado e com uma arma apontada à minha barriga.
A viagem estava a ser rápida, tínhamos andado bastantes quilómetros desde que saímos de Cascais poucos minutos antes, avistava ao longe a Torre de Belém. Tive um impulso de pegar na pistola que a Daniela trazia na mão e tentar verter a situação a meu favor, pensava que seria capaz de controlar os acontecimentos... Lutámos pela posse da arma, mas o resultado não foi o esperado. A arma foi disparada e a bala perfurou o banco do condutor, atingindo o mesmo nas costas. O carro ficou desgovernado, a alta velocidade pelas ruas de Lisboa, indo embater com violência numa paragem de autocarro. Lembro-me de ver algumas pessoas nessa mesma paragem antes do carro lá embater, algumas conseguiram fugir, outras não tiveram a mesma sorte.
O carro acabou por capotar, fiquei sem me mexer por instantes, por sorte, tinha o cinto de segurança posto, evitando assim males maiores. O condutor e o ocupante do lado estavam inconscientes e sangravam da cabeça, a Daniela começava a recuperar os sentidos e sangrava ligeiramente do nariz. Desapertei o cinto e saí pela janela do carro.
Doía-me o corpo todo, o máximo que consegui foi coxear alguns metros até uma cabina telefónica, lá dentro estava um senhor de idade, possivelmente pedindo ajuda.
Pára! – tinha a Daniela recuperado do acidente e gritava agora comigo.
Assustei-me ao vê-la de arma na mão, apontada a mim.
Comecei a bater nos vidros da cabina, o homem assustado, ficou paralisado a olhar para a mulher que me perseguia e não teve outra reacção senão aquela. Daniela, de arma na mão, mandou-o pousar o telefone, mas o pobre homem estava demasiado assustado para reagir e ficou ali imóvel. Ela repetiu as mesmas palavras de ordem, apontando agora a pistola na direcção do senhor, mas este pouco mais fez que assistir a tudo.
Daniela deve ter sentido que estava a perder o controlo da situação e baleou o idoso na cabeça, a bala perfurou o vidro da cabine e matou o pobre coitado.
Aproximou-se de mim e mandou-me levantar do chão. Algumas pessoas que tinham assistido a tudo de perto, corriam agora para longe, tentando evitar a mesma sorte que o outro desgraçado que agora jazia morto num destroço de vidros.
Ela pegou no telemóvel e chamou um carro para nos vir buscar.
Viste, olha o que aconteceu por tua culpa.
Se não tivesses feito merda, aquele homem ainda estaria vivo.
– ia ela me martirizando pelo que tinha acontecido.
Talvez ela não estivesse errada de todo, afinal um homem tinha morrido, se eu tivesse ficado quieto no carro e não lhe tentasse sacar da arma, estaríamos naquela altura num lugar completamente diferente e não ali rodeados de mortos... tal como as pessoas na paragem de autocarro, agora completamente desfeita.
Minutos depois, outro carro chegou para nos recolher, não havendo ainda qualquer sinal da presença de polícia. Antes de entrarmos no carro, Daniela bateu-me com o punho da pistola na cabeça, não me recordo da viagem que fiz, desmaiei.
Quando recuperei os sentidos e voltei a abrir os olhos, recordo-me apenas de estar fixamente a olhar para uma parede branca. Fechei novamente os olhos, sentia-me fraco e voltei a desmaiar. Acordei momentos mais tarde e tinha na minha frente a mesma imagem que antes vira, a parede branca. Acabei por despertar, apercebi-me então que não era uma parede branca, mas sim o tecto de uma pequena sala quadrada. Estava deitado numa cama, junto a uma das paredes, o espaço era bastante reduzido e pela primeira vez na vida senti-me claustrofóbico. Por cima da porta, estava uma câmara de vigilância, filmando na direcção da cama onde me encontrava.
Instantes depois, apareceram dois gorilas na sala, entroncados e vestidos de preto, levaram-me para uma outra sala, bastante iluminada e com uma cadeira que se assemelhava a uma de dentista, preenchida com bastantes acessórios cortantes.
Perguntei-lhes pelas minhas amigas, mas estes tipos não falavam e a única linguagem que conheciam era a expressão corporal, deram-me dois murros no estômago e amarraram-me na cadeira da tortura.
Daniela entrou na sala, os dois tipos saíram e fecharam a porta. Segundos depois, entrou uma nova pessoa nessa sala, era uma mulher, disse qualquer baixinho à Daniela. Não consegui perceber o que disse, mas reconheci de imediato aquela voz... Não poderia ser, que faria ela aqui, a Susana!
Não me cumprimentou como sempre havia feito, esta mulher antes sempre se fizera passar por minha amiga e chegara inclusive a ser bastante íntima, sem nunca ultrapassarmos a barreira da amizade, revelava-se agora uma pessoa totalmente diferente e que eu já não conhecia.
Daniela agarrou-me no braço e ela injectou-me uma droga qualquer na veia, comecei imediatamente a sentir tremores, suava imenso e o meu corpo ficara adormecido, estando o meu cérebro completamente sob o efeito desta merda, vulgarmente chamada de soro da verdade.
Susana dirigiu o interrogatório com a ajuda da Daniela, perguntaram-me tudo o que sabia da Patrícia, imensas questões pessoais quais os meus hábitos sociais e, no fim, voltaram a insistir em tudo o que tivesse a ver com a Patrícia. A droga que me deram apenas me deixava dizer a verdade, qualquer outro pensamento ou ideia que quisesse exprimir e fosse contraditória da verdade, ficava barrada na minha boca. Essas palavras pensadas mas não ditas, ficavam enroladas na língua e recolhiam ao seu estado mais primitivo, o pensamento.
Suava por todos os poros, quando a Susana deu por terminada a sessão, chamou alguém àquele local, para me levar de volta à sala onde tinha acordado. O efeito daquele soro ainda actuava em mim, fazia-me recordar cada pergunta como se ainda estivesse pendente.
A Daniela abandonou a sala do interrogatório e fiquei ali sozinho com a Susana, nenhuma delas me inspirava confiança e sentia a minha integridade física tão ameaçada na presença desta advogada que antes se fizera passar por minha amiga tal como com a outra psicopata assassina que acabara de sair.
Entretanto chegaram os dois tipos entroncados, desamarram-me da cadeira e carregaram comigo até ao quarto onde tinha acordado. Fui arrastado por aqueles animais naquele enorme corredor, chegado ao quarto, lançaram-me com violência no chão, como se fosse uma saca de batatas, mas não senti nada naquele momento, apenas observava sem reacção o que me iam fazendo.
Permaneci deitado no chão do quarto após os gajos saírem, imóvel. Susana ficou comigo, fechou a porta e apontou um comando na direcção da câmara que nos filmava. Reparei que a persistente luz vermelha da câmara se desligou.
Que estaria ela a fazer? Pensava que a câmara estivesse ali para vigiar quem fosse guardado em cativeiro.
Susana retirou do seu bolso um pequeno frasco e encostou-o ao meu nariz.
Vamos, cheira isto. É amoníaco concentrado. – disse ela.
Cheirei aquela merda, o odor intenso daquele composto rapidamente me chegou ao cérebro e despertou os sentidos antes adormecidos pelo soro que me haviam injectado.
A sua postura perante mim alterou-se, não era mais aquela cabra calculista e fria que tinha tão bem dirigido o interrogatório, estava mais calma e assemelhava-se um pouco mais à mulher que em tempos havia conhecido. Tentava-se explicar, não entrava em detalhes mas ia adiantando que o meu sequestro tinha sido um erro.
Aquelas palavras pareciam-me falsas, vinham carregadas de um sentimento não natural, eram ditas de maneira calculada, tento tocar-me nos meus pontos mais fracos. Não sabia porque haveria de acreditar nela agora, esta Susana que via à minha frente era-me totalmente estranha, não era nem uma sombra da amiga doce e carinhosa que em tempos conheci.
Que queres de mim? – perguntei eu.
Quero ajudar-te a sair daqui, com vida. – respondeu.
Fiquei sem saber o que dizer, comecei a temer pela minha vida, talvez fosse essa a intenção dela.
Perguntei-lhe pela Elsa e Diana, contou-me que estavam bem e que depois de serem interrogadas se livrariam delas...
Livram como? – interrompi a Susana.
Não te preocupes, vão deixá-las em casa, drogadas e sem se lembrarem de nada.
Acreditei nas palavras dela, talvez porque tivesse mesmo de acreditar para me sentir descansado e me quisesse convencer que a vida das minhas amigas não corria perigo e tudo fosse acabar bem para elas.
Toma, engole... – disse a Susana, dando-me duas cápsulas para a mão.
Que é isto, mais uma das tuas drogas? Não deves estar à espera que eu meta isso na boca, pois não?
Vamos, toma logo isso.
– insistiu ela.
Não, enquanto não me explicares que merda é esta. – disse eu.
Serve para te aumentar os níveis de adrenalina e recuperares alguma sensibilidade, o soro que te demos deixa-te assim como estás agora durante um dia. Sem isso, nem forças para ires à casa de banho terás. – acrescentou.
Engoli aqueles dois comprimidos a seco, esperava que não fossem novas drogas e me deixassem novamente à sua mercê ou inconsciente.
Susana ajudou-me a levantar do chão e deitou-me na cama. Disse que iria rapidamente sentir os efeitos dos comprimidos e assim estava a acontecer, recuperei parte da sensibilidade e senti as minhas reservas de energia serem restabelecidas.
Entretanto, contou-me o que fazia na agência e todo o seu envolvimento neste caso.
Ela era uma agente de campo, contratada pela Majestic SD6 assim que se formou em Direito anos antes. Mas algo não estava explicado, o porquê de eu estar ali naquele momento. Susana, tentando sempre esquivar-se a uma resposta directa, explicou-me com rodeios que a Patrícia também tinha sido uma agente operacional da Majestic SD6, mas que andava fugida desde há um mês, após uma missão de alto risco ter dado para o torto e toda a sua equipa de campo ter morrido. Se foi há um mês, aconteceu depois de a ver em Palma de Maiorca na piscina do nosso hotel. Dissera-me que ia para Nova Iorque... não sabia mais no que acreditar.
Susana, a tua aproximação a mim também fazia parte de um esquema?
Sim.
Até no dia que nos conhecemos?
– perguntei.
Sim, frequentávamos os mesmos sítios e a agência sabia que era fácil uma mulher atraente conseguir algo de ti.
E posso saber porque se deram a tanto trabalho?
– continuava eu a insistir com ela.
Para te recrutarmos, claro.
De que estás a falar?!
– cada vez percebia menos do que me dizia.
João, tu fizeste um teste para entrares na Majestic SD6 e passaste. Andamos a recolher informação sobre ti há mais de um ano.
Teste? Que teste? Eu não pedi por nada disto!
– as minhas dúvidas aumentavam.
Sim, quando conheceste a Patrícia...
Continuo sem perceber.
– disse eu.
O assalto à joalharia, já te lembras?
Sim, mas isso foi...
– nem sabia o que dizer.
Um teste, João. O alarme accionado de propósito, a Patrícia poderia lá ter entrado sem que ninguém sequer desse conta, mas accionou o alarme antes de sair. Juntamente com a denúncia anónima para a polícia, ainda quando vocês estavam a sair da discoteca Lux, foi simplesmente tudo preparado para te testar.
Então era tudo um esquema... Porque fizeram isso comigo?
– perguntei, insistindo para que me contasse tudo.
Para te termos connosco. Tens qualidades que apreciamos, mas tínhamos de ter certeza se eras capaz.
A confusão aumentava dentro da minha cabeça.
Pensei que fosses minha amiga.
E sou, João.
Não, não és. Nem tu nem nenhuma das cabras que estiveram envolvidas nisto.
João, se não fosse tua amiga, não te estaria a ajudar neste momento.
– argumentou ela.
Ajudar? Tu chamas a isto ajudar? Eu não! – disse eu, com a minha voz alterada.
Estava todo suado, Susana colocara em cima da minha cama uma nova muda de roupa e disse para me trocar. Na verdade, nem era mau pensado. Tinha as minhas roupas imundas e não iria a lado nenhuma naquela triste figura.
Susana não saiu do quarto para que eu trocasse de roupa, também não me importei, era apenas mais uma gaja que me via a gaita.
Ajudou-me a despir a roupa que trazia colada ao corpo, toda suada.
Já te sentes melhor? – perguntava ela.
Sim, recuperei a sensibilidade nos músculos.
Estou a ver que sim...
– aproximou-se, tocando no meu corpo despido.
Não liguei aos seus avanços, para quem já tinha sido tão usado, isto era uma brincadeira de crianças.
Peguei na camisola para me vestir...
Espera, não te vistas já. – disse ela, com um sorriso nos lábios.
Susana, agradeço o que estás a fazer, mas não estou com disposição para essas coisas.
Mas ela não recuou, passou a mão no meu peito e foi descendo lentamente...
Eu no teu lugar estaria, podes ter de ficar aqui retido até a Patrícia regressar sabe-se lá de onde.
Olha que isso pode levar imenso tempo.
– insistia ela, cinicamente.
A sua mão passeava delicadamente sobre o meu corpo suado, consenti que o fizesse e nem tive reflexos para rejeitar os seus avanços, era como se o meu corpo me ordenasse que o fizesse, apesar da mente estar apenas ocupada em tentar arranjar uma maneira de sair dali.
Fizemos amor naquele quarto, não foi amor para mim, foi simplesmente uma foda.
Sentia-me cheio de força, aqueles comprimidos deveriam ser afetaminas ou qualquer outra substância altamente dopante, mas estava sem dúvida a fazer o efeito pretendido, não sei era por quem.
Susana vestiu-se e despediu-se de mim na cama, agarrando na minha roupa antiga.
Adeus, João. Tenho de ir, agora é troca de turno do pessoal, isto vai estar menos movimentado por uns momentos...
Aquelas palavras não eram apenas de despedida, seguidas de um beijo caloroso nos lábios. Havia ali algo de estranho, era como se ela me estivesse a alertar ou aconselhar que aquela seria a minha pequena janelinha temporal de oportunidades.
Susana, espera...
Sim?
– recuou ela, fechando novamente a porta do quarto.
Na última vez que saímos, o Luizinho e o Alexandre também foram, tal como as tuas primas suecas...
Que tem isso? Já foi há mais de meio ano, João.
Sim, mas dessa vez também foi tudo planeado?
Claro, essas loiras eram duas agentes nossas, de visita a Portugal e tiveram o maior prazer em entrar nessa missão. Não vejo qual o teu problema, na altura ficaste bastante agradado, e com as duas, se bem me lembro.

Só há uma coisa que ainda não percebo, porque incluíram os meus amigos nos vossos esquemas? – perguntei.
Queríamos recolher toda a informação sobre os teus relacionamentos e contactos, confesso que foi trabalhoso.
Então foi tudo uma grande farsa desde o início?
Tal como esta foda que acabámos de dar, também fazia parte duma missão?
– acrescentei.
Oh João, não te conhecia assim tão sentimental... – disse ela, sorrindo.
Tens razão em apelidar assim a forma como nos conhecemos, mas o que fizemos agora foi por gosto, considera isto como uma despedida menos litigiosa. Até acho que a Patrícia tinha sido pouco generosa ao falar-nos de ti!
Óptimo, agora tinha a vida sexual documentada numa agência de psicopatas terroristas.
Vou indo, mudança de pessoal... – acrescentou ela, soltando um beijo e apontando na direcção da câmara de vigilância desligada.
Saiu, mas deixou a porta entreaberta. Apercebi-me que ela estava mesmo decidida a colaborar na minha hipotética fuga daquela local, sentia-me demasiado drogado para pensar noutra hipótese que não aquela ou que aquilo tudo faria parte de outro esquema, possivelmente um novo teste. Decidi arriscar a minha sorte, apesar de me sentir como um rato de laboratório num labirinto fechado.
Vesti-me à pressa, apenas tinha no quarto a roupa que a Susana me deixara. Sabia que tudo aquilo poderia ser uma cilada, mas não tinha nada a perder e os comprimidos que tinha ingerido, levavam-me a querer fazer coisas estúpidas, correr desalmadamente contra uma parede e atravessá-la, esta merda psicotrópica era mesmo boa, muito potente.
Corri pelo corredor, não se via sinal de presença humana, reparei inclusive nas luzes vermelhas de presença das câmaras de vigilância e estavam desligadas. Tudo estava a ser demasiado fácil, as câmaras desligadas, a falta de agentes nos corredores, mesmo a esta hora da madrugada, e bastantes portas abertas, onde antes necessitava de activação através de código digital... eram ingredientes bastante claros para que tudo isto estivesse planeado e alguém se estivesse a divertir à grande, numa salinha qualquer, observando todos os meus movimentos e preparado para agir na altura necessária. Se continuasse desta forma, estaria condenado ao fracasso, para além de me sentir perdido nestes corredores. Achei sensato parar de fugir e correr para aquele destino incerto, entrei então na primeira casa de banho que encontrei. Tranquei a porta, lavei a cara e esperei um pouco encostado a uma das paredes, não me sentia cansado, pelo menos fisicamente.
Continuava sem ouvir passos no corredor, mas sentia-me vigiado, apesar de não haverem câmaras de segurança na casa de banho. Tive uma enorme vontade de cagar, este deveria ser outros dos efeitos daqueles comprimidos, aliviei as tripas mesmo ali. Quando estava em pleno acto de libertação intestinal, olhei para o topo do cúbico onde me encontrava sentado e reparei numa grela que tapava uma conduta do sistema de ar condicionado. Pensei de imediato que aqueles tubos poderiam ser o meu bilhete de saída daquele lugar, sem dar muito nas vistas e apenas tendo cuidado para não cair em nenhum buraco ou numa sala repleta de agentes raivosos.
Despejei o autoclismo e trepei pela sanita até alcançar a grelha. Sentia-me cheio de vitalidade e força para aquilo, subi para o apertado tubo de ar e fechei a entrada atrás de mim, disfarçando assim o meu rasto.
Não sabia que direcção tomar, escolhi um dos lados para começar a minha busca pela liberdade.
Rastejei pelas condutas durante imenso tempo, passando sorrateiramente por cima de corredores agora preenchidos por agentes de segurança e pequenas salas repletas de gente, possivelmente trabalhadores.
Já tinha amanhecido lá fora, cheguei ao topo de uma sala iluminada pelo Sol, deixava passar pela sua janela toda a luz de um amanhecer. Conseguia ouvir o mar, deveria estar próximo de alguma praia.
A sala estava deserta e tinha uma janela aberta para a rua, começava a perder a sensibilidade muscular, o efeito dos comprimidos estava a dissipar-se, teria de aproveitar esta oportunidade para conseguir escapar.
Removi silenciosamente a grelha que me separava do interior da sala, deixei-me cair no chão, estranhamente pouca dor senti de uma queda de mais de dois metros. O meu corpo voltava a entrar em adormecimento, efeito sentido logo quando a Susana me injectou a soro nas veias. Sabia que tinha os minutos contados antes de voltar a ficar imóvel, encostei-me à janela e olhei lá para fora...
Dali, conseguia ver a encosta de uma ravina que era banhada por um vasto mar, lá bem em baixo. Não queria arriscar a minha sorte saindo calmamente pela porta de saída, sem que nada de anormal se estivesse a passar, e enfrentando um batalhão de agentes de segurança que tudo fariam para me parar.
Voltei a olhar para a ravina, seria uma descida atribulada pela encosta de uma montanha, mas seria por ali que iria ter de ir. O efeito dos comprimidos de adrenalina começa a dissipar-se cada vez mais depressa e a minha janelinha de oportunidades eram tão minúscula, que senti por momentos, mesmo que me atirasse de cabeça numa queda de cinquenta metros até ao mar, quando lá chegasse seria tarde demais para sentir o meu corpo e ter algum controlo das minhas capacidades motoras. Decidi arriscar, abri rapidamente o resto daquela janela e saltei para o exterior. Saltei a rede que me separava da encosta e corri até ao precipício, iniciando ali a minha descida.
Apesar de estar a perder sensibilidade, tinha por momentos, mesmo que poucos, uma força extrema no corpo e na mente. Estava claramente dopado, a Susana não me tinha dado simples comprimidos para as dores de cabeça, eram drogas catalisadoras e bem potentes, mas o seu efeito estava agora a desvanecer-se.
Consegui descer a encosta acidentada da montanha sem grandes problemas, mas a entrada nas águas agitadas do mar foi um problema. Lancei-me naquelas águas a mais de metros de altura, tentando evitar a rebentação das ondas, mas bati nalguma rocha com as costelas, apesar de não ter sentido muita dor, estava a ficar preso de movimentos no braço esquerdo.
Consegui nadar até à praia, ainda a uma distância razoável de onde tinha mergulhado. Quando finalmente cheguei à areia da praia, consegui ter uma visão panorâmica do sítio onde tinha sido mantido em cativeiro durante toda a noite. Reconheci aquele local, estava numa praia perto da Lagoa de Albufeira, a poucos quilómetros de Sesimbra.
Caminhava pela areia da praia, cada vez ia sentindo menos dor no corpo, mas era com bastante dificuldade que agora me deslocava. Arrastava as minhas pernas ensanguentadas pela areia, as calças que trazia vestidas estavam rasgadas, tal como toda a minha restante roupa. A sensibilidade era cada vez menor, deixei-me cair na areia sem que nada pudesse fazer, simplesmente estava imobilizado, toda a quantidade de soro que me tinha sido injectada ser assimilada pelo meu organismo. A Susana tinha falado num dia sob efeito desta droga, talvez fosse demasiado tempo para ficar ali estendido naquela praia deserta, sangrando e sem sentido o meu corpo, seria uma morte indolor.
Tremia bastante, apesar de não sentir qualquer frio, olhava para a minha pele e estava toda arrepiada, resultado das águas frias onde tinha caído. Tinha uma enorme nódoa negra no meu lado esquerdo, possivelmente seria alguma costela partida, provocada pelo meu embate numas rochas assim que mergulhei na água, mas continuava sem sentir nada, apenas assistia ao meu corpo quebrado.
Tentava fazer um último esforço para me levantar, era cada vez mais difícil mexer qualquer músculo do meu corpo. Escutei ao longe o som de um helicóptero aproximando-se, vindo do local de onde tinha fugido.
Acabou por aterrar perto de mim, desceram duas pessoas, a forte ventania provocada pelas hélices do helicóptero lançou-me areia nos olhos e só as consegui distinguir quando se chegaram junto de mim. Ali estava eu, de joelhos na areia daquela praia e sem forças para prosseguir, a Daniela apontava-me uma arma e a Susana ria cinicamente.
Muito bem, conseguiste iludir os nossos agentes e quase escapar. – disse a Susana.
O último que tinha tentado, não foi muito longe. – acrescentou a Daniela.
Tinha alguma dificuldade em falar, mas mesmo assim fiz um esforço...
Não tive assim tanta sorte, ou será que não vêem onde estou?
Era impressionante a maneira como elas encaravam as coisas, para elas tudo isto não passara de mais uma missão, um jogo com a vida de alguém e sentiam-se contentes assim.
Sim, mas só te detectámos pelo dispositivo de localização quando saíste da casa...
Mas qual dispositivo? Daniela, que estás a dizer?
– perguntei eu, sem saber do que ela estava a falar.
Voltámos a perder o contacto quando entraste na água, só não sei como conseguiste desviar o sinal dentro da casa. – concluiu a Daniela.
As condutas de ar são isoladas por aço e repele essas frequências, muito bem João. – acrescentou a Susana.
Mas qual dispositivo, porra. As cápsulas que me deste? – insisti eu.
Não, está mesmo junto a ti, no botão das calças que te dei para vestires.
Sentia-me rendido às evidencias, não sabia mais que fazer e poucas mais forças tinha para me mexer.
João, bons sonhos... – acenou a Daniela, apontando a pistola ao meu peito.
Ela disparou, mas não era uma bala. Um dardo penetrou na minha pele e comecei de imediato a fechar os olhos, uma vez mais, não senti nada.Adormeci profundamente, era um dardo tranquilizante.

0 Comentários:

Enviar um comentário

Subscrever Enviar feedback [Atom]

<< Página inicial