sábado, fevereiro 25, 2006

A lágrima que cai

Acabara de enterrar um capitulo na minha vida, um amor que se desvanecera, uma missão que finalmente de mim se esquecera. Sete longos meses se passaram, de nada mais ouvira falar. Nem Patrícia, nem Heitor mais me atormentavam, este último vítima de toda a sua vivência. Toda uma vida deixou, quando na cela se enforcou. Um pacote de cigarros na mão, algumas lágrimas no chão, foi quanto ao mundo deixou, no momento que dele se afastou.
Sentia-me livre, despegado daquele breve e efémero passado. Tinha visto a morte diante dos meus olhos castanhos, amigos que se foram, traços de mim que se destruíram, sítios novos que conheci, algumas mulheres por quem me perdi, e no fim, um amor que em memória se transformou e um gosto amargo deixou.
A Elsa não mais fazia parte da minha vida, os incidentes foram demasiado fortes para ela. Pouco depois da noite da captura do Heitor, sempre que estávamos sozinhos, sentíamos uma sombra por trás, uma memória de algo macabro nos perseguia, alguém que ali não estava nos escutava, todo o medo que não suplantou um desejo carnal incessante. As intrigas, as mulheres pelo meio e todo o risco de mais uma vida de quem gostava se apagar foi demasiado forte. Não mais a via, porém, não a esquecia. Gostei dos tempos que juntos passámos, para ela algumas palavras pensei, de coragem só agora me reforcei. Era assim que o coração me apertava o sentimento, uma mágoa interior, um desejo enorme mas que sucumbia agora numa necessidade maior. Escuto o que dizem as palavras, mesmo quando não dizem nada.
Então assim foi, à distancia de uma memória, as palavras que pensei...

O amor passou,
Mas no rosto ficou
A expressão de quem amou
E sobretudo gostou

Tudo o resto que sobrou
São memórias de dor
Quem nem o amor
Nem ele, as mudou

Ouço música alegre
Mas no fim, entregue
Á eterna solidão
Típica de uma ilusão

Facilmente, irás ver
Que é fácil esquecer
O que alguém sofreu
Por um beijo teu


O mundo não acabou, dali uma nova vida começou. A Agência não me matou, por fim me largou, apenas o corpo e a mente me moldou. Tornou-me mais forte, não mais a dor sentia, o meu sangue gelara.
Nascia mais um dia, com este Sol de Fevereiro que pouco ilumina. Abri uma janela do quarto, o frio da rua acompanhou-me naquelas paredes. Soltei um suspiro, acordava naquela manhã sem um corpo quente a meu lado, sem uma voz doce para me despertar. Estava em celibato, numa imensa greve de fome que se arrastava por duas semanas. Não mais havia tocado numa mulher desde então, o meu corpo estava necessitado de alguém que me desse paixão.
Era Sábado, na véspera chegara tarde do trabalho, apetecia-me diversão, algo novo para usar, uma gaja ou outra para o desejo enganar. Há três meses que não falava com a Elsa, poucas vezes entretanto a vi. Algumas mulheres novas pelo meio conheci, nem todas comi, e em poucas o mesmo senti. A vida continuava, uma nova página se virava e para a descoberta me encaminhava. As aulas eram cada vez menos, pouca ou nenhuma paciência tinha para a faculdade, o trabalho pagava-me as contas.
Fazia-se tarde, liguei ao meu amigo Zé Luís. Combinámos uma saída para aquela noite, o gajo inicialmente desculpou-se, dizendo que tinha coisas combinadas, mas do nada voltou atrás, fazendo inclusive pressão para nos encontrarmos. Escolhemos um sítio diferente dos nossos ares habituais, iríamos naquela noite ao Bairro Alto.
Depressa o dia foi passando, a sua chama de luz de extinguindo.
Tinha estacionado o carro há momentos, caminhei sozinho pela rua, olhei para as estrelas e vi a Lua. Estava no centro da praça do Camões, deambulava fazendo tempo, contanto minutos dispersos, escutando estranhos, prestando atenção a pombos moribundos. Um candeeiro dormente servia agora de apoio, carregava a minha mágoa, os primeiros visitantes da vida boémia há muito que ali estavam, agora a eles me juntava.
Do meu banco de jardim vi o Zé chegar, de longe lhe acenei, vinha sozinho e bem arranjado.
Fomos de imediato para um bar, tinha de me afogar em bacardi, a vontade era tanta, o cansaço do quotidiano necessitava urgentemente de um banho de licores. De tudo e de nada falávamos, não via este gajo há quase um mês. As mulheres eram assunto sobre a mesa, as do passado, a dele actual e algumas mais jeitosas que entravam pela porta do Fluid.
Duas delas não nos passaram nada despercebidas, acenaram discretamente na nossa direcção quando entraram pelas portas. Deveriam ser conhecidas do meu amigo Zé, eu nunca antes tinha visto aqueles nacos de carne, com alguma pena minha. O que parecia ser bom demais para ser verdade não se chegou a concretizar, passaram junto da nossa mesa directamente para o bar, nada disseram, pouco se manifestaram. Daquela visão ficou apenas um sorriso comprometedor estampado na cara do meu amigo, como se muito quisesse dizer e nada de real tivesse para contar.
A parvoíce das nossas conversas continuou, reparava de vez em quando que as raparigas olhavam para a nossa mesa, trocavam conversas impossíveis de serem escutas, sorrisos despercebidos. Uma delas tinha os olhos verdes, reparava dali, brilhavam com o cristal do seu copo sempre cheio e o barulho das luzes. A outra rapariga, menos discreta, mais energética, acenava agora novamente na nossa direcção. Chamavam alguém, vinha de trás de mim.
Olá João. – escutei uma voz que não ouvia há bastante tempo.
Não reconheci a voz no momento, mas sabia que me era familiar. Foi então que ao virar-me vi uma menina querida, uma velha conhecida dos tempos acalorados passados nas areias de Valadero.
Rita?... – perguntei, não me lembrando de todo do seu nome.
Estás com bom aspecto, fico contente por ainda te lembrares de mim. – respondeu ela.
Sim! Como seria capaz de não me lembrar. – acrescentei, mentindo um pouco.
Na verdade, pouco me lembrava dela. Conhecera a Rita em Cuba, no meu tempo de clausura, apenas uma vez a tinha visto desde que tinha chegado a Portugal, num acalorado jantar que se prolongou noite fora. A menina vivia à conta da avultada mesada que os pais lhe davam para não terem de a aturar, passeava pelo mundo todo, conhecia gente nova, fodia com quem queria nos cinco continentes e voltava para casa com uma mala cheia de recordações e um sorriso nos lábios.
Estás linda. – tentava meter conversa.
Ela sorriu, posou a mala na mesa, mas nada disse. Fez-se um silêncio de cortar a respiração, o ritmo acelerado do coração era cada vez mais intenso, ela conseguiu pôr-me desconfortável e estupidamente sentia-me como um menino totalmente à mercê desta mulher.
Olha, as tuas amigas estão impacientes. – disse, num tom de constrangimento.
Sim, é melhor ir.
Adeus então, gosto em ver-te. – acrescentei.
Não te despeças já...
A noite ainda agora começou e pressinto que ainda nos vamos ver hoje.
Beijou-me calorosamente atrás da orelha, os seus lábios ferviam. Foi ter com as suas amigas, deixou em mim mais que uma lembrança remexida, como se de um longo sono tivesse acordado, sentia-me excitado.
O meu corpo não mais chorava por alguém que não estava presente, voltei costas a sentimentos que queria esquecidos, sentia-me perseguido por sensações das quais não conseguia fugir.
Anda, preciso de passar num sitio. – pedia-me o Zé.
Estávamos ali há cerca de meia hora, ainda só ia no meu terceiro bacardi da noite e continuava cheio de sede, para além disso, tinha chegado uma possível companhia para aquele serão nocturno e trazia em anexo mais duas beldades. A sua inquietação era evidente, como se tivesse de estar em algum lado a uma precisa hora marcada. Tudo se tornou mais claro após a chegada da Rita ao Fluid, era evidente que havia alguma ligação ali, por mais ténue que pudesse ser, aquele acenar inicial das meninas na chegada ao bar não era simplesmente fruto da minha imaginação.
Pronto, está bem. Deixa-me só acabar o copo. – consenti.
Dali depressa saímos, as belas mulheres ficavam para trás. O Zé nada disse para onde íamos, limitava-me a segui-lo. Caminhávamos de encontro ao escuro, nada nos indicava os passos a dar, uma luz ao fundo da rua nos iluminava os passos dormentes.
O bater dos contentores, o vento que soprava forte pelo chão varrendo folhas de Outono. Portas mal fechadas, estores entreabertos, sombras na escuridão do desconhecido, olhares dissimulados.
Um longo manto de incertezas nos acompanhavam. Tive um arrepio solitário na espinha, sentia o meu corpo congelado. Um súbito suspiro atrás de mim, uma rosa que cai na calçada fria daquela rua, uma luz que agora se apaga. Era um vendedor de rosas indiano que batia no farol de um carro, certamente embriagado, caiu com aparato na estrada de rodagem.
Mal apreciamos os contrastes do mundo que nos rodeia, pena, infelizmente. Uma velha taberna de Lisboa, uma empregada simpática que atende sem demora, alguns inebriados bebendo água, música clássica tocando de ambiente. Encontro um velho amigo de faculdade, caído no seu canto, sobre a fria calçada, contando histórias a mitras desgraçados. Sorrisos de ocasião, palmadas de gratidão, mais uma dose servida, mais uma vida fodida. O Zé também o conhecia, era o simpático Mário, velho colega finalista de faculdade. Como estava diferente, a barba carregada pesava-lhe na idade, os olhos esbugalhados não escondiam algumas noites sem dormir. Parecia um coitado, mal vestido, cabelo despenteado, no entanto, bem humorado. Alguns bagaços havia bebido, sentei-me no mesmo lancil com ele, há meses que não trocava dois dedos de conversa com este bandalho.
A conversa foi curta, parece que o Mário esperava pelo Zé.
A casa é ali aquela, batam à porta que está lá gente. – disse o Mário.
O Zé entendeu na perfeição o que havia escutado, eu mantinha-me na ignorância.
E tu vais lá estar hoje? – perguntou o Zé, olhando para o Mário.
Sim, claro. Hoje sou eu quem recebe as pessoas e organizo o sorteio. – respondeu.
O clima de mistério não se havia dispersado, continuava confuso como sempre e agora dois gajos que sabiam algo e eu de nada desconfiava. A minha curiosidade tornou-se insuportável, tanto para mim como para eles. O Mário despediu-se de nós, reforçou a ideia que estava muito atrasado e tinha urgentemente de ir. O Zé não se livrava de mim tão facilmente, foi então que parte de todo o mistério se desvendou... Contou-me que há cinco meses conhecera as duas raparigas bonitas que acompanhavam a minha amiga Rita, no Fluid . Nada me havia dito para não estragar a surpresa, íamos para uma festa privada, o Mário iria lá estar e elas três também. Precisávamos de fatos para a ocasião, era por isso que tínhamos ido ali ter com o Mário.
Estávamos diante de uma loja de artefactos e antiguidades, as luzes estavam apagadas, sem qualquer sinal de vida. O Zé bateu na porta de madeira, nada do outro lado se ouviu.
Vamos embora, não vês que está fechada? – disse.
Bateu novamente na dura porta...
O Mário disse que era aqui. – respondeu ele.
Olha lá, mas tu vens às compras a estas horas? – voltei a insistir.
Desta vez o Zé ignorou as minhas palavras e voltou a bater. A porta imediatamente se abriu, um rapaz alto nos recebeu e mandou entrar.
Chegámos junto de um balcão, as luzes continuavam apagadas, éramos iluminados pelos candeeiros da rua.
Então, já escolheu o costume? – perguntou a criatura.
Sim e embrulhe mais um. – respondeu o Zé.
Leva um amigo hoje?
É verdade, é o meu convidado de honra.
Nada disse até sairmos da loja, pegava num saco que o vendedor me tinha dado para a mão. Lá dentro estava um fato de abade. O Zé também trazia a mesma coisa consigo.
O meu olhar desconfiado fez o Zé ter a necessidade de dizer alguma coisa.
Vamos para uma festa, espero que gostes.
Festa?! Assim vestidos ainda acabamos num convento. – interrompi.
Digamos que não erraste por muito, mas estou certo que vais gostar. – acrescentou ele.
Caminhávamos agora para os carros, pela calçada instável do típico Bairro Alto.
Deixávamos para trás algumas visões de desgraças, alguns bêbados caídos, uns poucos drogados estendidos. Junto da nossa passagem, encontrámos o olhar atento da polícia, rebocava carros que impediam a via pública. A razão era a não passagem de uma ambulância, vinha recolher o pobre indiano que tinha sido atropelado momentos antes.
Por ironia do destino, era uma carreta funerária que impedia a passagem da ambulância, com sorte para o indiano seria a vez de chegada da ambulância, a carreta teria de esperar.
Olha, o carro funerário vai a ser rebocado. – apontei, mostrando ao Zé.
Foda-se, e o morto vai lá dentro?! – disse ele.
Olhei para o Zé, não sabia se ria ou chorava.
Não estúpido, deve ser de algum morador.
Não está lá ninguém dentro, não vês que não tem as luzes acesas.
Ele estava com vontade de embirrar com aquilo, talvez fosse do álcool ingerido, talvez fosse uma necessidade de me calar as perguntas antes feitas sobre o que me esperava naquela noite.
E para que é que um morto precisa de luz? – voltava ele a insistir nas perguntas de merda.
Agora fui eu que me recusei a responder, escondi um sorriso discreto com a palma da mão e seguimos caminho até ao estacionamento.
Cada um em seu carro, fui atrás dele, do Bairro viajámos até ao cimo de Palmela, onde uma festa privada nascia no interior das muralhas do seu belo Castelo.
Quem organizava a festa era um mistério para mim, não deveria ser para o Zé. Esta seria já a terceira festa do género que vinha, todas elas passadas dentro daquelas íngremes muralhas, chegávamos ao mundo da fantasia, era assim como ele as descrevia.
Reconheci de imediato o carro da Rita à chegada, o Mercedes CLK do papá continuava bem estimado. Estacionámos os nossos junto de todos os outros, numa entrada escondida do Castelo, mais modernizada e com cancela automática.
Nunca antes tinha entrado naquelas muralhas, era uma visão totalmente nova para mim.
Apenas um velhote nos aguardava no portão de entrada, indicou-nos o caminho através de umas escadas que desciam para um pátio e lá encontrámos uma das casas que circundam o Castelo. A Lua iluminava os nossos passos, o terreno era duro e cheio de pedras soltas, mas o Zé parecia conhecer os cantos à casa e depressa entrámos na refundida casa. Um certo cheiro a mofo estava presente no ar, do hall abria-se um extenso corredor pouco iluminado, uma luz vermelha nos chamava ao fundo. O Mário estava lá, veio ter connosco a meio do corredor.
Algo de estranho e sinistro se passava dentro daquelas paredes, para além do notório cheiro a mofo, as paredes estavam repletas de húmidade, a fraca iluminação... Crescia um nervoso miudinho dentro de mim, por momentos, a cada passo dado no vazio, arrependia-me de estar ali, de me ter entregue aos cuidados do meu amigo Zé.
Zé, alguma vez fui mau para ti? – perguntei.
Então, que foi?
Podias ter dito logo que me querias pregar uma partida... Eu ria-me na mesma.
– acrescentei.
Fez-se silêncio, apenas interrompido pelos nossos passos nas masmorras, os breves sorrisos do momento depressa se esbateram das faces quando o Mário abriu a porta que se seguia. Via então a primeira mulher desde que ali cheguei, se assim lhe poderia chamar, uma velhota com cara de duzentos anos, curvada sobre os joelhos. Assustei-me com tal horror, tinha o mordomo da família Addams no portão de entrada e agora a esposa num dos salões da mansão, tinha em mente que aquele pesadelo desdentado diante de mim me iria atormentar noite fora. Tentei não pensar mais naquilo, estávamos numa antecâmara do salão principal, ali iríamos trocar de roupa e colocar uns adereços, tudo previamente arranjado pelo Zé e Mário. A velha mulher limitou-se a pegar nas nossas roupas e lentamente se afastou de nós, estava apenas ali para receber os convidados e tratar de guardar as roupas. Estavam outras peças num armário e bengaleiro ao lado, alguns vestidos de senhora e chapéus de homem.
Sentia-me estranho na pele de um caracterizado padre Franciscano, vestido de frade e apenas com pensamentos de pecado na cabeça. Olhava para eles, ambos me pareciam bastante familiarizados com todo o processo, não falavam, apenas executavam. Que pancada havia dado a este cabrão para me trazer ali, a um local de culto privado, nem queria saber que mais espectáculo de tarados eclesiásticos me aguardava.
Anda, vem daí. – pediu-me o Zé, para os acompanhar.
Estou a ficar assustado... – disse, com ar intimidado.
Calma João, o melhor esconde-se atrás daquelas portas.
Não me conseguia acalmar, não sabia se era medo ou pura excitação. Talvez tenha sido isso a atrair toda aquela gente que ali depositou a roupa. Conseguia escutar algum barulho através das espessas paredes de pedra, vinha da direcção das grandes portas, uma batucada de tambor e um coro de alguém, intensificava-se lentamente.
Coloca a tua máscara, tens de estar apresentável. – acrescentou o Zé.
Bem, com tudo isto, espero que esteja ali uma gaja boa que se queira confessar. – dizia o Mário, antes de abrir a porta da câmara principal.
As portas abriram-se, era uma sala ampla de gala e glamour, com imensas luzes no tecto, centenas de velas desenhando símbolos no chão, incutiam uma bela leveza de olhar, um iluminado e bem decorado ambiente de ritual. Contava mais que dez pessoas naquele centro atractivo, eles vestidos de frade e mascarados, semelhantes a nós, nelas apenas uma fina tanga lhes cobria o corpo. Reconheci as duas amigas que estavam no Fluid com a Rita, o Zé foi ao encontro delas. Apresentou-me as lindas mulheres, Emiliana e Marta. O soar do tambor intensificou-se, os cânticos de fundo deram lugar a música calma e os convidados começaram a juntar-se num único ponto da vasta sala. Nada se bebia, nada se falava, formava-se então um círculo humano em redor de um pote enorme com algum líquido lá dentro.
Do outro lado do salão, um casal descia pelas escadas. O padre Franciscano que agora se juntava a nós era o anfitrião, confidenciava-me o Zé, era a minha amiga Rita que o acompanhava, vinham de mãos dadas. Vê-la ali deixou-me logo em êxtase, estava mais elegante que nunca, os muitos meses passados tinham sido generosos com ela. O círculo estava assim completo, o pote no meio e copos contados no chão para cada um se servir. A cara do anfitrião era-me tão familiar, de certeza que já o havia visto antes, só não sabia onde. As suas parecenças com alguém que tinha marcado a minha vida eram incríveis, quase um clone de alguém que não se encontra mais entre nós.
As minhas inquietações deram lugar a um breve tintilar de copos, o gosto agridoce da bebida sugeria vodka misturada com mel. O Zé e Mário beberam as suas bebidas quase de shot, as meninas iam com mais calma. Havia algo diferente naquela bebida, alguma coisa se fazia sentir nos lábios e o seu vapor chegava rapidamente ao cérebro.
Zé, que é isto? – perguntei.
A bebida dos deuses.
Já tinha ouvido aquela expressão anteriormente, em terras de Cuba, mas nunca no velho continente. O sabor, esse, nunca antes tinha provado. Saboreava agora suavemente nos lábios a doce mistura de um chá, uma bebida afrodisíaca.
Isto é chá de coca? – voltei a perguntar.
Sim. Gostas?
Até se bebe bem... Mas vou ficar todo fodido!
Relaxa, João. Hoje estás por minha conta.
Pois, é mesmo isso que me preocupa.
– concluí, voltando a molhar os lábios.
O meu corpo sentia-se vazio, tornei a baixar o copo e a enchê-lo de bebida. Aquele movimento repetiu-se, o meu estado tinha-se alterado, não mais pensava no medo que tivera quando entrei naquelas muralhas e nos seus recantos sombrios, na velha que nos acompanhou na troca de vestuário, no ridículo que me sentia com aquelas roupas de padre sobre o corpo.
Saboreava o meu chá, seria certamente o último, as luzes do tecto desligaram-se, apercebi-me então de toda a extensão das velas estrategicamente colocadas na sala. O meu velho amigo Mário saiu por momentos do nosso redor para ir buscar qualquer coisa, foi então que o anfitrião de todo aquele ritual aproveitou o espaço deixado e veio apresentar-se a mim, para ele um novo convidado. Chamava-se Miguel, apenas uma venda lhe cobria os olhos e as dúvidas acerca de onde tinha antes visto aquela cara eram mais evidentes que nunca, faltava apenas um elo de ligação com tudo o que estava a tentar pensar para chegar a alguma conclusão. O chá de coca assim não deixou, estava mais confuso que nunca, o meu corpo queria outro tipo de acção, não ter de pensar infinitamente de onde e quando tinha conhecido aquele gajo. Menti em dizer que era o último copo de bebida que ingeria, a tentação era mais forte que a própria bebida e ainda mais zonzo fiquei. No entanto, despertou em mim outros sentidos, aguçou sensações, adocicou paladares. Olhava para as duas amigas do Zé com outros olhos, um instinto mais carnal fez-me querer saltar para cima delas no momento sem olhar a olhares de assistência, despia-me de preconceitos, só faltava deixar cair o hábito de frade. A música de fundo entrava-me pela cabeça, vagueava noutro mundo, o licor da noite empurrava-me para paragens na memória.
O Mário chegava por fim, trazia uma bandeja com envelopes selados, uns brancos e outros pretos.
Acho que podemos iniciar o sorteio. – dizia ele, entusiasmado.
O pote foi virado do avesso, as últimas gotas da preciosa bebida ficaram assim perdidas no chão. Tornaram a virar o pesado balde de cerâmica na sua posição inicial e, ainda húmido do seu néctar, o Mário colocou todos os envelopes no seu fundo.
Atenção, juntem-se aqui. Vai começar! – exclamou o Miguel.
A primeira pessoa circundou o pote e retirou um envelope de cor branca, outras se seguiram e retiravam os envelopes por uma sequência indefinida de cores. Tinha chegado a minha vez, não sabia que cor tirar do pequeno monte de papel. O Mário chegou-se próximo de mim, apontou para os pretos e disse-me que o fosse buscar. Começava lentamente a perceber a lógica do acto, não que naquele estado conseguisse ter a percepção necessária para assimilar informação, o chá de coca tinha batido forte e duro, o meu cérebro estava em modo de suspensão para tudo o que divergisse de sexo e folia. Na mão de cada mulher estava um envelope branco, na de cada homem estavam os restantes pretos. Foi então que chegou o momento da abertura dos mesmos, o meu continha um cartão com o número cinco escrito em numeração romana, o Mário estava sempre a meu lado, nada deixava de me explicar, apesar de pouco ir escutando. Cada número correspondia a uma sala secundária do vasto Castelo, as pessoas que tivessem o mesmo número iriam para lá.
As tangas justas que as belas mulheres usavam, os nossos hábitos de frade sem roupa interior, um poderoso afrodisíaco servido de entrada e todo aquele ambiente propicio ao êxtase começavam a fazer sentido. Os convidados agrupavam-se com os seus homólogos pares. Vi a Marta chegar perto de mim...
Mostra-me o teu número. – disse ela.
Não tive reacção no instante, as suas mãos pegaram nas minhas e tirou-me o envelope da mão.
Olha, que sorte. Parece que nos vamos conhecer melhor.
Eu apenas a escutava, não sabia o que concretamente se passaria a seguir, mas tinha uma breve ideia e agradava-me... bastante. A sorte parecia ter sido minha amiga, quando então a Rita me agarrou na mão e levou com ela, a Marta acompanhava-nos.
Vamos para o nosso cantinho. Foi bom assim, gosto daquele quarto. – dizia a Rita.
Olhei para trás e não mais vi o Zé, certamente estaria bem entregue a alguma daquelas mulheres. O Mário ainda apanhava os envelopes do chão e arrumava os copos caídos, enquanto a Emiliana, a doce princesinha de olhos verdes, saía em sorte ao anfitrião da festa. Tinham já as máscaras tiradas, apenas o vi ao longe a caminho do seu número da sorte com a Emiliana, foi então que se fez uma fraca luz dentro da minha cabeça e tive a sensação de estar a olhar para o Heitor. Que chá tão forte era este, tinha visões de um defunto que jazia há mais de quatro meses acompanhando a bela Emiliana. Foi ela quem pela última vez vi antes da Marta fechar a porta do quarto. Assemelhava-se a uma suite num dos melhores hotéis, bem decorada, com uma cama enorme e espelhos em cima.
Elas pouca roupa traziam vestida, o meu hábito de frade começava a incomodar-me e a Rita depressa me tratou de ajudar. Fiquei nu diante delas, deitaram-me na cama e aconchegaram-se no meu corpo. Toda a força do afrodisíaco era evidente, sentia-me com mais tesão que nunca, com duas morenas espectaculares esfregando os seus corpos calorosos no meu.
Mas o meu corpo não estava aquecido de forma homogénea, estranhamente sentia uma leve brisa nos pés, era psicológico certamente, mas desconhecia tal efeito.
Rita... Tenho os pés frios. – disse-lhe ao ouvido.
A menina desceu com a língua pelo meu corpo, molhando cada pedaço, deixando um calor especial, parou nos meus pés. A Marta encostou a cabeça no meu peito, mordia os seus lábios e vinha beijar-me a boca. Conseguia ver as duas em acção pelo tecto espelhado, teria de dar para as duas ou seria uma grande desilusão. A Rita conhecia bem o meu corpo, a Marta tocava-lhe pela primeira vez, um ar de inocência ainda acompanhava os seus movimentos, era bom, sabia a ternura e a excitação era cada vez mais forte. Não me aguentava deitado de costas, virei-me sobre a Marta e desci lentamente com uma mão pelo seu corpo, aquecia intensamente a cada passagem na sua pele suave. A Rita subiu um pouco na cama, sentia-se afastada aos nossos pés. Os seus braços envolveram o meu pescoço e puxaram a minha cabeça para ela, queria beijar-me, chupar a minha língua... os seus braços faziam cada vez mais pressão no meu pescoço, as suas unhas arranhavam o meu peito sempre que me afastava. Gostava do calor e toque da Rita, mas eram os lábios e seios da Marta que tinham a minha atenção. Estavam rijinhos e redondinhos, pequenos mas bonitos, neles me perdi. A outra menina queria mais atenção para ela, desceu pelo meio peito, provocando-me e encostando a sua boca no pénis, primeiro lambeu e depois começou a chupar com toda a vontade. Quanto mais me contorcia, mais ela chupava, a Marta assistia calma, no seu cantinho da cama, junto dos meus lábios, enquanto a Rita chupava a verga vigorosamente, mais me contorcia e respirava descontroladamente, mais ela insistia... As minhas pernas tremeram, dobraram-se sob ela, agarrei-a pelos cabelos e vi-me na sua boca.
Parecia que tinha sido atropelado por um camião, sentia-me exausto, mas também notava que recuperava bruscamente. Segundos depois, estava novamente com o vigor de momentos antes, coloquei-me de joelhos na cama, puxei a Marta pelas pernas e acariciei a doce Rita que estava deitava junto a mim. Elas trocavam leves carícias, massajavam os seios e esperavam pelo toque dos meus lábios no clitóris. As meninas depressa começaram a soltar suaves gemidos, o calor era intenso naquele quarto. Fizemos amor durante muito tempo, não se sabia quem comia quem, quem dava prazer a quem, eu e elas estávamos ligados, apenas nos preocupávamos em tirar o máximo proveito da situação.
O efeito do chá afrodisíaco era potente e duradouro, mas o corpo começava a ressentir-se de todo o esforço apesar do cérebro não achar o mesmo. Estávamos cansados, era tempo de uma última brincadeira. A Marta estava saciada, deitou-se a meu lado na cama e encostou a sua cabeça no meu braço. A Rita queria diversão, levantou-se da cama e retirou dois lenços de uma gaveta ali perto. Amarrou-me as mãos, quase me cortava a circulação nos pulsos. Molhou o seu dedo na minha boca e foi descendo dos meus lábios até ao umbigo. Levantou-se bruscamente da cama e dirigiu-se para a porta do quarto...
Hei?! Então, espera! Onde vais? – insurgi-me.
Ela nada disse, continuou a andar e abriu a porta. O pior surgiu depois, estava alguém do outro lado da porta que se abria, era o Miguel, acompanhado por dois seguranças carregando o Zé e a Emiliana.
Foda-se! Que se passa?
Rita... tu?

Disparava perguntas em todas as direcções, ficavam sem resposta. O Zé sangrava da cara, deve ter sido arrancado à força do seu leito sexual. A bela Marta estava sem fala, levantou-se para ir acudir a amiga Emiliana e foi violentamente arremessada contra um sofá ao lado da cama, tombou e virou o sofá de pernas para o ar, ficando deitada debaixo dele.
Que merda vem a ser esta?! – gritava eu, preso na cama.
Não me conseguia soltar de qualquer maneira, permanecia deitado nu tentando-me virar, os meus pulsos estavam inchados de tão apertados estarem, os meus amigos feridos, uma raiva imensa crescia dentro de mim. O Miguel aproximou-se da beira da cama, chegou-se perto de mim e agarrou-me no pescoço.
Vou fazer com que sofras tanto como o meu irmão. – sussurrou ao meu ouvido.
Ah?! – disse, alarmado.
O Zé acordou da sua inconsciência na chegada ao quarto, não dizia coisa com coisa, encostou-se ao sofá voltado onde a Marta estava caída. Ajudou a levantá-la, um dos seguranças prontamente se dirigiu a eles e os intimidou a ficarem quietos. O outro segurança nada fazia, prendia o braço da Emiliana e a doce menina nada conseguia fazer, pouco tentava escapar, caía então no chão pouco ameno do quarto, ali ficava impávida e serena.
Tentava contorcer-me, não havia maneira de me soltar daquelas amarras improvisadas, Miguel estava a meu lado, sempre com um olhar superior, dialogando consigo próprio e para alguém imaginário. Miguel não falava para as paredes, no seu discurso eloquente, mencionara varias vezes o nome de Heitor e irmão, foi então que me apercebi da verdadeira extensão do sarilho que me havia metido. O anfitrião daquela festa tinha como principal inimigo quem entregou o seu irmão à Agência, mais tarde viria a suicidar-se enforcado na própria cela. Tinha sede de vingança, queria encontrar um possível culpado e castigá-lo ferozmente, tratou de montar um plano, atrair-me à sua toca, manipulando amigos meus, gajas que conhecia, ambientes onde vivia. O seu discurso era contra mim, o segurança que pegava na Emiliana, soltou-a, veio ter comigo e tirou-me a prisão dos pulsos. Fui encostado contra a parede, socado e esmurrado na cara, deitado ao chão e pontapeado sem parar. Cuspia sangue, engolia em seco, remexia na minha barriga e sentia um inchaço enorme, a noite não me estava a correr bem, Miguel e os seus capangas controlavam a situação.
Estava deitado no chão, via a porta do quarto aberta e alguém se aproximando. O hábito de frade tinha sido trocado pelas próprias roupas, o único gajo que usaria uma combinação tão foleira só poderia ser o velho Mário.
Mário, que fazes aqui? – perguntou um dos seguranças.
Ele nada disse, tinha uma mão atrás das costas, num acto de coragem e força bruta sem precedentes, lançou uma garrafa de champanhe que tinha na mão escondida atrás das costas e atingiu violentamente a cabeça de um dos capangas do Miguel. O pobre animal caiu estatelado no chão, sem reacção, sangrando de uma ferida aberta.
A Rita virou-se contra o Mário, O Zé aproveitou a confusão e agarrou o pescoço do outro gorila que faltava dominar. A Marta, ainda combalida do embate, ajudou o Mário e emaranhou-se numa luta com a Rita, as duas despidas, guerreando no chão frio do anterior ninho de sedução.
A Emiliana por fim acordou do seu sono momentâneo, caiu em cima da Rita e a pobre rapariga nada pode fazer contra as duas feras, sedentas de explicações. Havia ainda o Miguel para deitar abaixo, ele sacou de uma arma e disparou à queima roupa no pobre Mário, não conseguiu escapar do projéctil malicioso, mergulhou sobre os lençóis pretos da cama e os tingiu com o seu sangue. O meu amigo sangrava da barriga, gritava de dor, temia que o pior estivesse breve de acontecer.
Deitei fora as dores que sentia e agarrei o Miguel pelas costas, a sua arma continuava empunhada e disparava tiros soltos sem direcção escolhida, um deles atingiu o segurança que o Zé agarrava pelo pescoço, o tipo contorcia-se no chão. Consegui deitar a mão à arma dos crimes, sem olhar a impiedade, agarrei-lhe no pulso e torci-o até o escutar quebrar, fazia o Miguel sentir uma dor enorme, tinha o braço partido e acabara de perder completamente o controlo da situação.
Nada estava resolvido ou o perigo longe de nos voltar a encontrar, escutávamos constantemente pelos rádios dos seguranças o chamamento dos colegas, o tempo estava limitado até sermos descobertos. Pegámos no Mário pelos ombros, foi carregado corredores fora, chegámos depressa à sala onde havíamos trocado de roupa, ali estavam os nossos trajes de chegada àquele Inferno. Não havia tempo a perder, eles vinham mesmo atrás de nós. Fomos interrompidos por tiros de pistola, o Zé agarrou numas calças e num par de sapatos, consegui desprender o meu casaco do cabide e vestir as calças que ali tinha deixado.
O Mário, mais debilitado, foi atingido novamente, desta vez nas costas.
Fujam! Fujam... Eu fico bem... – gritava ele, caído sobre a pedra.
Os nossos rostos ficaram gelados, víamos um amigo de longa data cair sem esperanças no duro chão do Castelo, os seguranças corriam no seu alcance, nada mais havia a fazer.
Corram, seus parvos... – despedia-se o velho camarada.
Com sorte tinha a chave do carro no bolso das calças, as únicas entre nós. Ela lá estava, onde a havia deixado e saímos daquelas muralhas o mais rápido possível, rasgando a fundo, puxando por todos os cavalos do Audi, O pesadelo não estava terminado, olhei pelo espelho retrovisor e tinha na peugada um poderoso jipe BMW X5, parecia um tractor sobre o chão de calçada junto ao Castelo e predominante em Palmela. A fuga da casa do Inferno não estava fácil, iríamos ser alcançados de certeza.
Vinha a ser perseguido há já alguns minutos, o outro carro tentava constantemente abalroar o meu para fora da estrada. Seria nestas alturas que mais esperaria que a polícia aparecesse, nem um único sinal verde passámos, um traço contínuo respeitámos, mas de autoridades nada avistámos.
A estrada nacional para a Moita era rodeada de uma vasta mata, se pelo asfalto não nos safássemos, teríamos de arriscar a sorte na protecção dos arvoredos. Escutava tiros vindos na nossa direcção, as meninas estavam assustadas, cada vez menos metros de estrada nos separavam, o jipe encostava-se uma vez mais na minha lateral, o carro deslizava, quase perdia o controlo. Um dos tiros não se limitou a fazer barulho, atingiu um dos pneus e àquela velocidade saí disparado da faixa de rodagem.
O carro embateu de lado, quase em máxima rotação, num aglomerado de árvores junto à berma da estrada nacional, estávamos todos bem, depois de alguns peões e perda de tracção permanente no Audi, saímos do carro a correr, em direcção ao escuro da mata, fugindo do feroz jipe que havia travado e contornado a marcha em nosso alcance.
O meu carro estava atulhado em lama e pequenos arbustos, dali não sairia para lado algum, tínhamos de fugir dali e não perdemos tempo. As meninas corriam descalças pelo mato dentro, o medo era tanto que corriam sem dor, sem olhar para trás, sem rumo certo.
O passo de corrida cessou com o desconforto sentido nos pés pelas raízes de árvores e pequenas pedras encontradas pelo caminho, estávamos já bastante distantes do local do embate, não escutávamos homens em nossa perseguição.
Vagueávamos em direcção da Lua, pouco iluminava o nosso caminho ardiloso naquela noite. Avistámos uma construção em madeira ao fundo, junto de um pequeno lago.
A caminhada era custosa, os pés arrefeciam e doíam bastante, em poucos metros estávamos diante de uma cabana construída em madeira, parecia sem ninguém. A porta não chegou a ser arrombada, apenas estava encostada. Não tinha luz, água ou telefone, lá dentro fazia tanto frio como no seu exterior. Uma mesa velha de cozinha e um sofá eram as suas mobilas, teria de servir, não nos poderíamos queixar. Apesar do gelo que sentia nos ossos, o meu coração tinha baixado a pulsação, encontrava ali algum refugiu.
Parece que o pior já passou. – suspirei, nada descontraído.
As meninas também estavam assustadas e o Zé há algum tempo que tinha ido cagar, talvez tivesse caído pela sanita abaixo, no meio de tanta adrenalina e confusão, difícil seria distinguir onde estaria a merda. Emiliana e a Marta vagueavam junto das janelas, nuas e deliciosas, com arrepios nos seus corpos a tremelicar. Tirei o meu casaco e coloquei-o sobre os ombros gelados da Emiliana.
Toma, agasalha-te.
Obrigada, João.
– agradeceu, com um sorriso nos lábios trémulos.
O Zé regressou da casa de banho, vinha branco feito cal, muito teria cagado. Quase nada trazia vestido consigo, durante a fuga, apenas nas calças conseguiu agarrar. A Marta continuava completamente despida, sem que nada cobrisse um pedaço do seu corpo. Tentava aquecer-se, esfregando as mãos uma na outra, passando-as pelo corpo atlético, esperando que algum de nós fizesse o favor de a ajudar.
Nada assim aconteceu, estávamos todos demasiado assustados e intrigados com o que de mal poderia ainda acontecer naquela noite ao relento. A doce Marta continuava gelada, havia uma toalha sobre a única mesa de madeira existente naquela cabana, serviu para a aquecer, a noite esperava-se que fosse longa e muito fria.
O Sol na manhã seguinte despertou-nos, não havia sinal algum de arrombamento na frágil porta da cabana de madeira, os vidros estavam intactos e não parecia haver alguém nas redondezas. Fiz uma caminhada junto do local onde tínhamos dormido, havia um lago ao longe e dezenas de patos a chapinhar. Deveria ser por isso que ali estava a cabana, era uma zona de caça aos patos e durante toda a noite esperámos ser caçados como patos, dentro da toca dos caçadores.
Voltei para dentro, o Zé e a Marta ainda dormiam enroscados, tentando esquecer o frio que lhes invadia os ossos. A Emiliana já estava desperta, não havia café sobre a mesa e uma torrada quente a sair, mas a bonita rapariga fez-me companhia a comer o resto de um pacote de bolachas deixado ali esquecido, usava apenas o meu casaco sobre o seu corpo despido. Tinha a cara vermelha e as mãos quentes, o seu nariz encostou no meu e um primeiro beijo com sentimento trocámos. Foi bom, foi breve, ali aninhados ficámos.