terça-feira, maio 15, 2007

Madrugada VermelhaMadrugada Vermelha

O mundo novo que conhecera na Colômbia fora mais que uma simples expedição, a fragilidade da vida humana foi por demais evidente. Agora, quase um ano corrido, o suor e a dor desvaneciam-se com as memórias desses momentos, mas algo de abrupto me tinha acontecido.
Assim que o cruzeiro atracou na costa Colombiana começou ali um longo calvário. Não mais tomei contacto com a minha antiga existência, fora arrancado da liberdade por agentes federais naquele mesmo porto e mais tarde arrastado para uma cela minúscula durante três dias. Não estava sozinho nesta etapa da minha vida, a Patrícia partilhava a cela com a Mara e Emiliana e eu estava com os meus amigos.
Os guardas colombianos abandonaram o caso, tinham chegado dois tipos à esquadra para falarem comigo e com a Patrícia. Bem vestidos e penteados pela mãe, apresentaram-se como elementos do governo português e que estariam ali para tratarem da nossa situação. Não chegámos a passar nova noite naquela esquadra, fomos recambiados para o Consulado de Portugal, onde certamente seria deportado para o controle das forças portuguesas. Não sabia do que era propriamente acusado, a minha culpa era a cumplicidade com a Patrícia, estava destinado a provar da sua sorte.
Os detalhes da minha captura eram demasiado vagos, relacionavam a minha presença na Colômbia com as mortes na ilha das estátuas em terracota. Não haviam provas, nem testemunhas vivas do que realmente se havia passado naquele lugar remoto, os argumentos que serviam de acusação pareciam mais desculpas para uma detenção forçada.
A noite passada no Consulado foi agradável, após horas de interrogatórios durante aqueles dias. Os dois homens vestidos de preto jantaram connosco no salão da majestosa mansão, na presença do cônsul. O jantar foi longo, Patrícia estava impaciente, olhava constantemente em seu redor, suspeito que tentaria descobrir uma brecha na segurança e fugir como bem se habituara. Eu não tinha essa confiança e tentava desfrutar calmamente da primeira refeição decente desde que saí de Portugal. O assunto da nossa captura surgiu no fim do banquete, estávamos a ser demasiado bem tratados para simples marginais apanhados na América Latina, os dois tipos estavam ali para nos libertarem das garras da justiça colombiana, mas essa liberdade teria um preço. A Mara e a Emiliana, tal como os rapazes, subiram aos quartos, foi então que se prosseguiu a conversa e veio a lume o verdadeiro motivo da nossa deslocação para ali. Cada um deles trazia todo o nosso processo de vida, toda a documentação que se possa imaginar existir sobre uma pessoa, os seus hábitos, algumas fotografias, os seus relacionamentos... tudo, tudo estava arquivado numa simples pasta que cada um deles religiosamente guardava. Não seria possível que fossem simples funcionários públicos do nosso governo, ninguém anda na rua com a vida inteira de outra pessoa, muito menos se daria ao trabalho de viajar dez horas de avião para tirarem alguém de uma modesta prisão. Um deles, o que abriu o meu processo, apresentou-se na prisão como Carlos Mendes, não tinha forma de comprovar se era realmente esse o seu nome, mas também pouca diferença faria. Falou durante alguns minutos e nada me pareceu com nexo, estava a escutar palavras que na minha cabeça não faziam qualquer sentido, uma conversa demasiado formal, pouco conteúdo... no entanto, eles pareciam saber tudo sobre nós, nós nada deles.
João, estes gajos são do SIS. Pensavas que eram anjos da guarda?
Acorda.
– recordo-me claramente da Patrícia me alertar.
Questionava-me na altura que fariam agentes do Serviço de Informações de Segurança , apesar do seu raio de acção ser bastante alargado, estranhamente equacionava ter algo a ver comigo.
Eles não continuaram com os rodeios, foram directos ao assunto e isso seria então algo que estaria interessado em ouvir. Foi-nos apresentada uma proposta, no entender deles, algo simples e que evitaria uma prisão prolongada em solo estrangeiro. As acusações contra nós seriam todas retiradas, os nossos amigos voltariam em segurança para Portugal e tudo não passaria de uma triste memória. O que nos ofereciam era um contrato de servidão institucional, seriamos remunerados, treinados e colocados meses mais tarde em liberdade operacional, como se estivéssemos a ser recrutados para algo que pudesse acontecer. Os traços dessa liberdade não seriam ali discutidos, era uma proposta que me parecia oca, tão vaga em explicações, tão abrangente a aspectos obscuros e uma porta aberta para um mundo desconhecido que seriamos forçados a viver.
Não tive grande escolha, apesar de estar a assinar, o que me parecia, um contrato em branco, o revés da medalha era satisfatório, pelo menos viveria longe de uma prisão imunda.
A assinatura naquele papel que mudaria a minha vida, levou com ela a minha liberdade mental, foi o momento que cortei com todos os meus laços emocionais. Entreguei todos os meus objectos pessoais àqueles homens, não me despedi dos meus amigos e nessa mesma noite, eu e a Patrícia, fomos levados para um Aeroporto militar.
Não chegámos a pisar solo português, da América do Sul voámos para o norte de África num avião particular, nada fazia sentido, tudo parecia um longo pesadelo sem fim anunciado ou beliscão que me acordasse.
Cheguei encarapuçado ao nosso último destino, estava assim desde que naquele país aterrei. Tinha chegado ao local que chamaria de casa durante os próximos dez meses, o meu Universo ficava reduzido a um posto de campanha em pleno deserto, um antigo forte de batalha utilizado pela Legião Estrangeira. Os legionários há muito que abandonaram aquelas ruínas, algo mais sofisticado tinha dado lugar onde outrora foram travadas batalhas de espada em punho. Não se avistavam os fatos cremes e os chapéus de banda, homens vestidos com fatos pretos tinham tomado os seus lugares, as débeis paredes pedregosas sobre as areias do deserto serviam apenas de fachada, o forte real eram bem abaixo da superfície, levando mais de um minuto de elevador a alcançar.
Exausto da longa viagem, escutava a voz da Patrícia a meu lado, como se esticasse o braço e conseguisse tocar-lhe. Mal conseguia abrir os olhos, a luz forte sobre nós ofuscava e o cansaço apoderava-se do discernimento. Patrícia estava diferente, parecia assustada, as suas palavras de desagrado, horas antes, tinham dado lugar a uma estranha expressão de medo no seu rosto, como se tivesse visto um fantasma.
Que se passa? – perguntei-lhe.
Nada respondeu, continuou a olhar fixamente na direcção de um homem ao canto da sala, um sujeito com aspecto sinistro que remexia numa rasurada folha de papel vezes sem conta.
Começava ali a segunda parte do nosso compromisso, após a aceitação dos termos em branco impostos e passado carta branca das nossas vidas, seria naquele momento que se iniciava o nosso treino. Foram tempos difíceis, uma realidade para a qual não estava minimamente preparado. Estava longe de quem gostava, seria sempre com algum sofrimento que recordava aqueles meses de isolamento, são lágrimas que choro em silêncio. Acabava-se a merda da história do mundo girar, sempre o fez, não precisa que alguém o repetisse constantemente em tudo o que é frase. Sempre continuará... Mas para mim deixara de o fazer, a minha vida era uma sombra do que um dia foi, a minha mente era reciclada para uma nova ideologia, o meu corpo era moldado para um novo ser. No entanto, há coisas que nunca mudam, a criação da vida, o estilo das coisas, o jeito de viver e para muitos a maneira de amar. Fechava-se um velho ciclo sob as areias daquele deserto, o mundo continuava certamente a girar, para alguns. Tenta-se recolher pequenos pedaços de nós desfeitos no exausto e ardido antro da livre e desmedida entrega da nossa existência aos caprichos de alguém, o mundo continua a girar. Nos duros e prolongados meses, reconfortava-me com lembranças de quem em outros lados deixei, consegue-se levantar um pouco o animo para mais tarde se cair em desalento, continua a girar, sofre-se cá dentro, e este não pára.
Foram os piores meses da minha vida, os mais cansativos fisicamente, desastrosos a nível emocional, no entanto estimulantes. O calvário tinha chegado ao fim, foi uma experiência de vida que não repetiria, mas um ensinamento bem estruturado para o resto de uma vida.

Voava para Portugal, imaginando o mar, sentado num assento de avião. Lembrando-me das areias quentes de um Verão tropical, olhei para lá do horizonte e recordava a casa deixada para trás. Retrocedo dez meses, a água batia no casco de um barco, o mar estava bravio, duas caras amigas me acompanhavam, tantas outras me olhavam. Tudo escureceu, foi assim há dez meses, não sei como foi possível deixar tudo o que sucedeu acontecer.
O olhar de menino extinguia-se velozmente nesta chegada e com nova percepção a este mundo exterior retornava, nascia para a sociedade um ser de sentimentos temperados pelo calor do deserto africano e pelas mentes dementes que o impulsionaram a cortar com a afectividade e delicadeza de expressão. Era agora uma alma perdida num mar de esquecidos. O tempo passou, deixou-nos mazelas, os corpos doridos, os sentimentos feridos.
Chegava finalmente a casa, o trajecto do aeroporto tinha sido recordado com nostalgia, alguma felicidade por novamente ver tais paisagens. O Sol pairava sobre a cabeça, era diferente do que à força me habituara, tão distante como o outro, a este reconhecia os traços e quereria ver nascer num novo dia.
Era manhã de Sábado, batia levemente na porta após um ano em cativeiro, não tinha avisado ninguém que iria regressar a casa. A minha mãe abriu a porta, chorava e apalpava-me o rosto, tentava reconhecer os traços de menino no seu filho, estavam tapados por uma barba de desleixo, o cabelo despenteado e um sentimento de frieza que não me era habitual. Não verti uma lágrima, um sentimento, uma saudade sequer.
Durante este ano de ausência, mantivera os meus pais na sombra, tinha sido forçado durante o cativeiro a inventar constantes mentiras, das quais eles se encarregavam de fazer atravessar o Mediterrâneo, para lhes despistar a curiosidade pelos sítios onde supostamente vagueava e as suas crescentes preocupações. Num dia bebia café num barco sobre as gélidas águas do Senna, na semana seguinte fugia até à praça das estátuas em Praga ou perdia-me num dos muitos bares de Amsterdão. Nas suas mentes e dos que me rodeavam, eu estava numas emocionantes e demoradas expedições pela Europa, a trabalho, sem data de regresso. Essa era outro ponto que fora deixado ao cuidado de quem me acolhia, estava oficialmente empregado como consultor na Fundação Nacional de Belas Artes, um nome de fachada para outros tantos funcionários que por aquele forte em solo africano haviam passado e agora vagueavam inertes por esse mundo fora.
Cedo me habituara às mentiras, com o passar das semanas, a necessidade de enganar estava enraizada na minha maneira de agir, surgia naturalmente como se uma parte de mim não mais quisesse regressar àquele antigo mundo.
Passei uma semana a tentar restabelecer-me ao passado desligado, custava mais do que alguma vez pudesse imaginar, agora que estava diante do reencontro com antigos laços criados, a minha mente dava a cada detalhe uma importância diferente, a cada pessoa um significado menor. Indiferente a esses desejos e lembranças de outrora, haviam inúmeros pontos que teria de tomar em consideração para que a minha reinserção pudesse ser concluída.
Encontrei-me com a Mara e Emiliana numa esplanada junto ao Tejo, adivinhava-se uma bela tarde de Sol. Estavam surpresas por me verem e desagradas por nada lhes dizer durante quase um ano sem ser apenas um vago telefonema naquela manhã. Elas e os rapazes tinham voltado para Portugal num voo comercial na tarde seguinte à minha partida da Colômbia, foram bem tratados como prometido e, oficialmente, a sua triste passagem por aquele país não passava duma atribulada lembrança turística. Quiserem saber tudo, o que me acontecera, por onde tinha andado, que contasse o que em verdade nunca lhes poderia contar. O novo emprego improvisado como consultor serviu para a ocasião, alguma ostentação da minha parte no carro e fato vistoso enquadravam-se perfeitamente na personagem que me haviam criado e àquelas preciosidades havia mostrado. Fizemos um pacto, nada do que foi vivido naquele pais sairia de lá, ficaria para sempre esquecido nas nossas mentes.
Connosco à mesa juntou-se a Débora, o seu rosto belo inalterado e o corpo bem delineado eram momentos do passado que recordava com satisfação e neste presente de reflexão eram alicerces sólidos para uma melhor reunião com o que em tempos numa vida toda deixei. Estava bonita como sempre, ela que outrora em mim por caminhos escuros vagueou, em sítios não seguros me tocou, algumas das minhas loucuras escutou, algumas das minhas ternuras provou. A sua falta foi notada durante os meses de cativeiro, era agora sentida.
De tudo e de nada se conversou, a tarde passou em passo acelerado. Fiquei de me encontrar com a Mara na manhã seguinte, segundo ela, tínhamos compras. Aceitei a custo, uma manhã passada entre lojas não seria o que mais poderia desejar, mas para compensar a longa ausência acedi ao seu pedido. As marcações em agenda não se ficavam por ali, tinha combinado com a Débora uma saída para aquela noite. Não tinha ainda frequentado qualquer dos locais onde antigamente tanto do meu tempo perdia e naquelas noites parte da minha existência vivia. Estava a dar os primeiros passos numa aproximação ao que em tempos foi de facto a minha vida, encontrara-me com algumas das pessoas que queria e a algum sítio bonito naquela noite certamente iria.
O que parecia um filme perfeito deixava subitamente de o parecer. Recebi uma mensagem no telemóvel dado pela Fundação, curta e discreta.
Doca de Alcântara – Armazém H – 2300.
Tinha sido solto no mundo real com um objectivo, sabia que a minha sofrida liberdade teria um preço, era então que o momento de o começar a pagar chegava. Na verdade aquele local fazia parte da minha anterior existência, mais uma casa junto ao Tejo que bem conhecia, não era mais que o Blues Café nas Docas. Talvez a Patrícia também aparecesse, ela tinha sido libertada antes de mim e soube que estaria em Portugal.
Deixei a minha amiga em casa, com a promessa que mais tarde ali passaria para a buscar. O nosso destino para aquela noite estava involuntariamente traçado, o tempo de intervalo seria curto.
A hora marcada aproximava-se, os bares começavam a ganhar vida, os carros amontoavam-se nos locais públicos. Era uma correria de pessoas que não estava acostumado, fugiam dos seus carros para uma noite que os acolhia, nada em troca pedia, um mundo novo de emoções lhes oferecia. Cheguei acompanhado para uma ocasião que exigiu uma presença de mim sozinho, sem estar preocupado, peguei com leveza pela mão da minha amiga e estava na hora de encarar o que atrás daquela mensagem trazia.
Aprumei o colarinho do smoking e dirigi-me para a porta. Os seguranças nada disseram, afastaram-se da porta e era uma nova realidade que se abria naquela noite para mim. O som atrás das cortinas estava ainda no seu início, o bar estava aberto e as primeiras bebidas já tinham sido pedidas. A pouca afluência sentida naquela hora redecorava o Blues como um calmo e relaxante local de lazer, longe de loucura e excitação que se adivinhava para as horas seguintes. Todas as caras eram marcadas, novos hábitos forçosamente ensinados tomavam conta dos meus sentidos, as janelas eram contadas, as portas estudadas. Um novo ser adormecido em mim estava a ser despertado com uma simples evidência que algo se passaria naquela noite depois das onze.
Contava poucos minutos para a hora marcada, recebi uma nova mensagem no telemóvel.
WC dos Homens, vem sozinho.
Dou um último gole na bebida, passo a mão pelo cabelo da doce Débora e ausento-me do bar. Encaminho-me para a casa de banho, passei as cortinas e sou abordado por uma cara conhecida. As apresentações eram escusadas, Carlos Mendes era o mesmo agente que me havia tirado da Colômbia e por meia dúzia visitou-me no forte em África para se inteirar da minha evolução. Tinha sido atraído àquele local, fomos para a cave da discoteca, eram passos dados no desconhecido, de todos os locais que ali pisara dentro, aquele nunca fora sequer imaginado. A música calara-se, as vozes na entrada deram lugar a um silêncio comprometedor, um misto de medo e excitação, não sabia o que me esperava por detrás da porta que agora se abria. Tinha sido levado a uma sala, as luzes estavam acesas e outra cara conhecida estava no seu interior. A Patrícia sempre tinha comparecido, não a via desde a estadia na Argélia e não tinha havido qualquer tentativo de um contactar o outro desde que de lá tínhamos saído, apesar disso, senti-me um pouco mais confortável. Estava um outro tipo na sala, bem vestido e engravatado, abria vagarosamente uma pasta sobre a mesa de reuniões. Não havia sofás naquela sala, como em tantas outras de discotecas. Esta era mais séria, as luzes claras e um computador portátil sobre a mesa davam um ar mais sóbrio.
Esta era a primeira chamada ao activo desde a conclusão do treino, estava ansioso, sem saber o que dali esperar e mil e uma coisas imaginar. A reunião prosseguiu, o ecrã do portátil servia de modo para a apresentação do que se assemelharia a uma missão, a minha primeira. Foram apresentadas oito fotografias, incluindo entre elas duas caras que não me eram nada estranhas, Patrícia parecia conhecê-los a todos. Senti um ligeiro arrepio pelo corpo, duas daquelas caras não só me eram familiares como as conhecia bem, eram os falecidos Heitor e Miguel, da antiga Agência da Patrícia. Os restantes pertenceriam supostamente à restante célula, da qual a Patrícia fez parte em tempos, e que agora estava novamente activa. O tipo todo engravatado afastava-se do teclado e Carlos Mendes passava a apresentar os objectivos que dali esperava ver cumpridos, sem entrar em grandes detalhes, exibindo e falando apenas do estritamente necessário. A minha mente assimilava aquelas palavras de uma forma que não estava habituada, parecia que a minha consciência tinha ficado junto ao bar a beber um copo com a Débora e o meu corpo robotizado ali estivesse a escutar cada ordem dada.
A missão não seria propriamente algo que me viesse a orgulhar de cumprir, os objectivos eram claros, todos aqueles nomes teriam de pertencer futuramente a um simples obituário de jornal, sem que volta ou alternativa pudesse ser dada. Estavam em causa assuntos de segurança nacional, dizia o outro tipo engravatado que nada durante toda a apresentação disse. Para mim nada disso fazia sentido, muito menos me interessava, mas notava que algo dentro de mim queria completar aquelas tarefas, como se aqueles alvos estivessem já executados por vontade. Não sabia que se passava comigo, era um sentimento ambíguo, teria a consciência fragilizada ou seria fruto das drogas dadas durante treino no deserto causadoras de uma nova mentalidade moldada ao capricho de assassinos frios e calculistas. A Patrícia teria de me auxiliar, a localização e manipulação dos alvos ficaria por sua conta e risco, dada a sua anterior ligação, apesar de momentaneamente ténue, com todos os nomes sorteados naquela noite.
Não poderia nem queria comprometer a missão, sob pena de ao falhar estar a atentar contra a minha própria vida ou dos que me rodeiam, essas coisas fariam muito mais sentido agora, no momento de todas as incertezas para se levar a cabo algo macabro e descabido de uma antiga vivência livre dessa dor.
A reunião não terminava sem uma última nota, Carlos mostrava-me pela última vez naquela noite uma fotografia, era um dos alvos, Cristina Vieira. Estaria presente naquela noite no Blues Café, arrastada para aquele lugar que agora me parecia sombrio por um telefonema da Patrícia. O modo da sua morte estava preparado, Patrícia começaria o trabalho sujo, eu só teria de assegurar que o plano não fosse alterado. Não havia mesmo volta a dar, a missão tinha sido iniciada e cabia-me levar a cabo dali para diante. Fui acompanhado pela Patrícia para o centro da pista, agora mais composta. A Débora desesperava junto ao bar, a sua expressão era menos sorridente, estava chateada comigo por a fazer esperar durante dez minutos sem uma explicação. Teria de a compensar e com a vida de outra pessoa terminar, esperava-se uma noite atarefada e não sabia por qual das missões começar.
Patrícia tinha-se misturado com a multidão que ia compondo cada lugar vago na discoteca, esperava o nosso primeiro alvo. Não dispunha de qualquer arma evidente, o local não era propriamente isolado, milhares de olhares serviam de audiência a uma execução não por mim programada. As novas sensações que ia descobrindo não me eram familiares, o medo tinha ficado à porta daquela sala na cave, as incertezas deixadas junto de um portátil e uma nova postura era agora saliente na minha presença.
Débora levou-me para dançar, foi então que vi a Patrícia acompanhada pela rapariga que momentos antes fazia capa de revista na secção dos alvos que já deveriam estar mortos e enterrados. Patrícia estava sem dúvida a fazer o seu trabalho, apesar se friamente conduzir outra pessoa a um passo da sua morte, encarregava-se também de a fazer esquecer com cada último momento da sua curta restante experiência de vida, adulterando-lhe a bebida com cocaína.
O tempo ia passando, a minha hora de entrar em acção não estaria muito longe, dei duas passagens pela casa de banho, continuavam as duas junto ao bar aquecendo os seus corpos com licores, pareciam estar a colocar a conversa e a bebida em dia.
Estávamos naquela discoteca há mais de três horas, aproveitei uma ida da Débora à casa de banho, e dirigi-me na direcção das duas velhas conhecidas, de copo em mão. Apresentei-me como qualquer anormal faria numa discoteca daquelas, ofereci-me para pagar uma bebida às meninas e estava lançado o primeiro passo na construção de uma destruição naquela noite. Patrícia fazia o seu papel, mostrava-se disponível e cooperava discretamente, arrastava a jovem Cristina para uma sorte doentia. Avistei ao longe a Débora procurando por mim, talvez tivesse sido má ideia tê-la trazido comigo, não haveria como alterar isso. Patrícia sussurrava-me ao ouvido, Cristina parecia eufórica, o efeito da mistura estava a fazer efeito. O passo seguinte seria levá-la para fora dali e em qualquer outro lugar concluir o desfecho anunciado. Decidi dar mais uma volta pela discoteca, deixei o copo meio cheio pelo chão e fui ao bar buscar duas bebidas. Dancei um pouco mais com a Débora, a postura fria era abalada por uma ligeira sensação no estômago, um aperto no vazio que não sabia explicar. Abandonei uma vez mais a bela acompanhante naquela pista, fui a correr para a casa de banho, o bacardi misturado com toda aquela adrenalina deu-me a volta à barriga. Os estragos pareciam grandes, tinha as tripas em alvoroço. Permaneci fechado dentro daquelas quatro paredes aromatizadas com toda a essência de uma noite ao ar livre. Os ponteiros do relógio avançavam, não estava com vontade nenhuma de me levantar da sanita, parecia confortável e um óptimo local para passar um serão. Senti-me adormecer, os olhos pesavam, as mãos estavam caídas pelos joelhos, a cabeça tombava sem direcção. Não senti despertar, mas acordava certamente. De olhos abertos e movimentos revitalizados, vagueava em pleno deserto africano, completamente exausto e desidratado. Aninhava os meus pés na areia, estava quente, escutava um mar imaginário a poucos passos de mim e avistava uma miragem, por entre a neblina, uma fonte ao longe no areal. Caminhei até lá, a fonte secara e criara um lago, não tinha peixes, nem folhas ou pedrinhas, a sua água era um espelho vazio e nele via quem era, nada surgia, o menino de outros tempos deixara de existir. Pensei que enlouquecera, onde estava a confortável sanita de há instantes atrás, ou o cheiro desagradável do que expressava cá para fora... Estavam mesmo ali, o barulho da música voltava, os pés calçados contorciam-se nos sapatos. Corri para fora daquele pequeno tormento, foi então que tive enfrentar o meu desafio. Cristina atravessava as cortinas, descia para uma das casas de banho, vinha em pouco desequilibrada e gotas de suor escorriam pela sua face, tinha as capacidades cognitivas afectadas, e facilmente se deixou levar nos meus braços para a porta da casa de banho das senhoras. Beijei os seus lábios, ela tentava retribuir o beijo e o seu corpo subia um pouco mais de temperatura. Esperei que a última rapariga saísse de lá, sem ninguém mais a servir de audiência, entrei com a Cristina num cubículo livre, servia perfeitamente. Pedi-lhe que trancasse o fecho da pequena porta, os seus lábios estavam desidratados, a sua respiração era demasiado ofegante e o seu coração parecia estar a entrar em arritmia cardíaca. Não precisei de qualquer esforço para que a vida daquela jovem terminasse, a droga faria o resto do trabalho sujo e limitei-me a levar o seu corpo ao limite do seu esforço. A minha mão descia para dentro da sua saia, estimulava a pobre Cristina no que seria a sua última corria para um último fôlego. A sua excitação aumentava em flecha, o calor do seu corpo tornava-se em vapor e foi então que os espasmos começaram, as dificuldades respiratórias seguiram-se e o seu coração finalmente parou.
Esperei que a casa de banho voltasse a ficar vazia, a porta do cubículo permaneceria trancada por dentro, coloquei o casado do fato por cima da divisória e saltei sem deixar qualquer rasto da minha presença naquele local mal afortunado.
Fui para a festa como se nada mais que uma dor de barriga me tivesse importunado, Débora continuava a dançar na pista e a Patrícia encaminhava-se para a saída. O trabalho para a minha noite estava concluído, não sabia o que sentir ou pensar, era o vazio que me ocupava a mente naquele momento, peguei na Débora e saímos também.
Dali até chegar minha casa foi num instante, deixei primeiro a minha fiel acompanhante em casa, sem beijo ou afecto forçado, o calor do meu corpo tinha-me abandonado no momento que a Cristina se desligou deste mundo.
A frieza de ocasião transformou o resto da noite numa eternidade difícil de atravessar. Algumas memórias recentes assolavam-me a passividade de um sono madrugador. Não ficara indiferente ao que se passara, àquela vida prematuramente ceifada. Com a elevada dose de adrenalina que me correu pelas veias, não tive tempo para pensar naquele alvo como pessoa, como sendo a filha de alguém. Era simplesmente um nome assinalado numa folha de instruções. Não sentia remorsos, sequer pena pela dor infligida. O que estava feito não poderia ser desfeito, mas sentia pela primeira vez que talvez todo aquele esforço tivesse sido em vão, como se a situação não justificasse necessariamente aquele desfecho, frio e sombrio.
Faltavam cinco nomes a serem eliminados, após a morte de mais um deles depois do Heitor e o seu irmão Miguel, certamente iriam desconfiar desta recente morte e que algo de anormal poderia estar a acontecer no seio da sua organização. Não pensava neles como cinco pessoas que teria de eliminar, mas que era imperativo despachar-me, antes que aquelas vidas me escapassem de vez.
Iria receber informações na manhã seguinte sobre as restantes pessoas abater, estava impaciente, não conseguia pregar olho com tanta ansiedade. Vesti-me à pressa, peguei nas chaves do carro e fui novamente para a rua. Conduzi pelo Barreiro, a lado nenhum fui dar, via apenas as horas passar. Estacionei o carro junto à praia, parei para escutar o mar, as coisas que ele me disse. Fiquei parado naquele cais, apenas ouvindo, foi por demais o que fui sentindo. Tinha saudades do que era, nada mais me lembrava de sentir. Após tanto tempo de ausência, há coisas que se perdem pelos momentos, outras que se aprumam e se mostram no momento.
O amanhecer pouco tardou, algumas gaivotas sobrevoavam. Não fugi desta vez, o primeiro barco da manhã ao longe navegava, eu apenas ali passeava. Soltei-me e acabei por me perder na vista por Lisboa, longe de por onde horas antes vagueava. Gostava do que então deste lado via, sonhava com o pouco que sentia, eram dos momentos de lá que me esquecia. Fiquei ali feito menino, brincava com as luzes e as cores.
Entrei por casa com os raios de Sol do novo dia, este chegava e iluminava o quarto sem pedir licença, repetia o mesmo ritual desde há uns dias, não tinha como dormir. Liguei o portátil na expectativa de receber alguma informação nova e comecei a carregar o ficheiro. O tocar da campainha fez a minha mente dispersar-se por momentos e afastar a minha ansiedade daquele ecrã de computador. Era a Mara, vinha sorridente logo pela manhã. Apanhou-me com a roupa do dia anterior ainda por despir, com tantas coisas pelo meio tinha-me esquecido do que combináramos na tarde anterior.
João, estás com um aspecto de boémio... Ainda agora acordaste e já estás assim?
Ainda era de manhã e a menina já estava com piadas parvas. Pedi-lhe que aguardasse um pouco no quarto, a casa nova que me fora atribuída estava pouco mobilada e o seu recheio resumia-se a uma cama e televisão. Tomei um duche, tentava limpar do corpo as marcas da noite anterior, não saíam, estavam escondidas onde um lavar de chuveiro nunca conseguiria apagar, bem entranhadas numa mente que se adulterava velozmente e se tornava numa sombra do que em tempos foi.
Quando regressei, a Mara deitada sobre a cama e olhava fixamente para o ecrã do computador. Com o tocar da campainha nem me lembrei que tinha colocado os dados a carregarem para o disco, uma distracção estúpida.
Conheces a minha irmã?
Penso que não, é gira? – respondi.
Ela faz anos hoje, vens comigo à festa dela.
Na verdade, não fazia a mínima ideia de quem fosse a sua irmã, de todas as vezes que saímos nunca a tínhamos convidado. Peguei no portátil, dei uma vista de olhos pelo que tinha carregado e a festa de anos da irmã da Mara teria de ficar para o próximo ano, naquela noite teria de ir a uma outra festa de aniversário, mas com uma presente diferente. Os cinco elementos, três rapazes e duas raparigas, uma delas a aniversariante, iriam estar nessa mesma noite todos reunidos num restaurante em Lisboa. A morte da Cristina Vieira ainda não tinha sido divulgada e talvez fosse a altura ideal para se arrumar este assunto de uma vez por todas.
Anda caramelo, vamos no meu carro. – apressava-me ela.
Esqueço esses assuntos por um momento, vou com a Mara às compras, afinal sempre precisava de roupa. os meus gostos tinham-se alterado, a roupa confortável e de ocasião dos tempos académicos dera lugar a tecidos caros que vestiam um indivíduo snobe e bem arranjado que não saía para a rua sem a sua adaptação a uma nova realidade estar bem definida. Os fatos Armani, os sapatos Miguel Vieira, as camisas pretas... adereços que outrora desprezava, faziam agora parte integrante da minha vida. Mara estranhava de onde tinha surgido o meu avultado poder de compra repentino.
Eram quase horas de almoço, Mara telefonou para a irmã e pediu-lhe que fosse almoçar connosco no Fórum. A jovem rapariga não tardou a chegar, de longe tinha o bom aspecto da irmã, o seu caminhar tornava-se único na minha cabeça, as pessoas em redor tornavam-se em sombras e dava mais atenção a uma expressão de menina que não me parecia totalmente desconhecida. Talvez o cabelo estivesse diferente, agora os olhos, as expressões do rosto e os seus lábios já tinham sido marcados por mim, nalgum outro lugar qualquer.
Cátia, este é o meu amigo João que te falei. – apresentava-nos a Mara.
Fiquei paralisado, a respiração alterou-se...
Cátia?! A sua semelhança incrível com alguém que detalhadamente observara e agora o nome. Disse que tinha de ir à casa de banho, afastei-me das duas jovens e longe dos seus olhares telefonei à Patrícia.
Estou? Patrícia... Porque não me disseste que a Cátia era irmã da Mara?
Ela hesitou em responder...
Não era relevante. Faz o teu trabalho.
Até logo.
– terminou, desligando a chamada.
Voltei para junto da companhia das meninas, estava menos nervoso e com a cara refrescada. A Cátia, pelo que se revelava, não era uma simples desconhecida, uma jovem bonita que via de primeira vez. O seu nome e fotografia tinham sido divulgados na noite anterior e a festa de anos à qual teria de ir nesta noite seria a dela.
Tento disfarçar o meu estado extasiado e confirmo a minha presença na sua festa para aquela noite. Mas ainda era de manhã e estava com uma fome desgraçada, tínhamos um almoço pela frente e uma oportunidade de conhecer melhor aquele que seria o mais novo membro de uma célula clandestina que supostamente ameaçava a segurança de muita gente. Nos seus recém-chegados 19 anos, mais me parecia uma rapariga de escola, parecia-me difícil que aquela doce expressão se revelasse numa mulher fria e calculista como vinha descrito no seu processo. Parecia frágil, as aparências poderiam iludir. No entanto, fiquei com dúvidas. Eram muitas, como se quisesse terminar a missão, como se tudo o que me fora impingido fosse falso e estas pessoas estivessem a morrer sem uma razão.
As palavras de outros perseguiam-me, esses tantos outros que me ditam o tempo, me controlam os segundos, me sugam os momentos. Era assim o meu viver, contando o tempo do meu ser. Soltava devaneios em silêncio, pedia ao mundo que me acalmasse. Queria desfocar as cores da fotografia que vi naquele ecrã, queria que fosse outra pessoa, queria que houvesse uma razão, queria tirar o brilho que aquele momento não teve... torná-la mais artificial, mostrando a visão que tive daquele momento, turvo na minha mente, desfocado de toda uma realidade. Mas não o conseguia, era a mesma amiga de hoje, de um curto amanhã talvez.
Mal falei durante o almoço, escutava as palavras da Cátia numa última tentativa quase desesperada de perceber o que se passava na sua cabeça e se iria levar a minha missão a cabo. O almoço foi subitamente interrompido por um telefonema, alguém dava a triste noticia à aniversariante da morte da Cristina. Ficou abalada, verteu uma lágrima.
As compras terminaram, o almoço teve o seu fim. Mara levou-me a casa.
Giro o pulso, observo a paisagem simples e descuidada de uma via rápida. Tudo gira, nenhum momento se perde para respirar, o relógio não pára, os carros não abrandam, as árvores não sossegam, as nuvens não descolam. Perguntei cinicamente à Mara quem era a tal Cristina, ao que me respondeu sem certezas, mas que se lembrava apenas dela como uma das amigas da irmã, uma colega de faculdade.
A viagem parecia nunca mais terminar, continuava a remoer no mesmo pensamento. Mara deixou-me em casa, a nova postura de frieza era abalada por um sentimento antigo, por uma necessidade de proteger aquela frágil vida. A Patrícia iria estar presente naquela festa, uma equipa de exteriores aguardaria qualquer sinal e a conclusão do plano serias levada a cabo noutra localização, longe de uma multidão de espectadores.
O jantar estava marcado para o Esqueci-me, um restaurante pequeno e bastante agradável junto ao Restelo. As cada vez mais curtas horas que o antecediam foram passadas em reflexão, nem o Carlos Mendes nem a Patrícia não me haviam dito como o plano seria executado naquela noite, apenas que seria naquele espaço, não tinha forma de o evitar de se iniciar. Recebi as plantas de todo o estabelecimento, conhecia o restaurante de algumas noites lá passadas entre copos de bacardi. Decorei facilmente os cantos à casa, no seu interior estariam apenas dois funcionários, o Lemos e o Carlos. Das seis mesas de jantar, metade estariam ocupadas por nós e nenhuma das outras ocupadas, alguém se deu a um grande trabalho a preparar o terreno, fazendo uma marcação simultânea para as restantes vagas.
Mara foi com a irmã para Lisboa, no meu carro levei o Alexandre e o Gonçalo, também eles convidados. as dúvidas voltavam á carga, tentava lutar contra o que me corria pela cabeça, queria fugir, mas não me deixava levar.
Rapazes, eu não vos contei propriamente o que andei a fazer durante estes dez meses fora de Portugal. - desabafei.
Queria continuar a conversa, contar-lhes todos os detalhes, mas a iniciativa desvaneceu-se. Uma força interior maior fez com que os meus lábios se selassem. As cores do ambiente transformaram-se em cinzentos quando aquelas palavras disse, ofuscavam-se neste meu parecer. Queria que o Gonçalo e o Alexandre tivessem a minha visão das coisas, um auto-retrato do meu intimo, a falta de alegria do meu ser. Naquela noite não sabia quem iria ser, ainda estava para perceber, mas algo teria de acontecer.
Pedi-lhes que confiassem em mim, fizessem o que lhes pedisse sem hesitarem, em nome dos bons velhos tempos. Eles não percebiam o teor das minhas palavras, pensavam que enlouquecera de vez, mas teria de os cativar a acreditarem em mim. Sabia que algo de grave iria acontecer no interior do restaurante naquela noite e quando fosse o momento, estes dois teriam de estar longe dali, não suportaria ter de viver com a perda das suas vidas em consciência. Eles não ficaram nada convencidos, infelizmente não poderia ser mais claro com eles, teriam simplesmente de esperar o inesperado e acreditar em mim.
Estava perdido num caminho que era a sombra de uma dúvida...
Esse caminho levou-me ao Esqueci-me como destino, ainda vazio e acolhedor quando lá cheguei, quase por ninguém esperei. Entrei com dois amigos, a casa era nossa, estava colorida demais para o meu estado de espírito, tanta luz odiei, tentei-me isolar num cantinho lá escondido. Sabia que dali não escaparia, o ambiente engolia quem nele se deixasse absorver.
No restaurante estavam alguns convidados sentados, alguns amigos em comum. Os rapazes e a Mara faziam a minha ponte de ligação com as restantes pessoas sentadas à mesa. Haviam outras celebridades à força naquele pequeno Patrícia chegava e cumprimentava quem se propusera aniquilar, os seus lábios quentes escondiam uma fria e vil predadora que naquela noite se mostraria. Estava determinado em não deixar que a sua vontade fosse avante, ela precisaria de mim para os eliminar aos cinco e seria aí que revelaria as minhas verdadeiras intenções.
Chegavam as sobremesas e nada se tinha passado, Patrícia levantou-se da mesa e fez-me sinal que a acompanhasse.
Alexandre, toma as chaves do meu carro.
Então, que se passa? – perguntava ele.
Lembras-te do que falámos no carro? Pois, está algo para acontecer.
O Gonçalo estava atento, a sua expressão deixara de estar sorridente e abava a cabeça em sinal de consentimento, no entanto, tinha quase a certeza que não estava a perceber nada do que lhes dizia e abanava a cabeça apenas para que me calasse até que a maluqueira passasse.
Alexandre, vai com o Gonçalo lá para fora. Entrem no carro e não saiam de lá até eu dizer.
Eles não se levantaram de imediato, estavam impávidos e serenos, atentos às minhas palavras mas inaptos de movimentos. Seria assim tão difícil que me dessem ouvidos por uma vez que fosse. Bem, talvez tivesse que lhes espetar com um garfo na perna para que acordassem para uma realidade que se aproximava cada vez mais veloz da deles a cada segundo que passava.
Mexam-se! – falei um pouco mais alto, apertando as chaves do Audi na mão do Alexandre.
Levantaram-se então dos seus lugares, deram um pouco nas vistas por saírem juntos, mas a mesa estava servida, os copos ficando vazios e a falta das suas pouco faladores presenças no seio daqueles convidados seria um mal menor. Deixei que atravessassem a porta, subi do meu lugar e fui de encontro à Patrícia que me aguardava na casa de banho. Não seria pelas razões de outros tempos, uma corrida semelhante a outras ocasiões, uma rapidinha para arruinar a monotonia, desta vez o assunto era serio e nada de prazeroso. Fiz uma chamada para o telemóvel do Gonçalo, atendeu de imediato, pedi-lhe que em situação alguma, por muito estranho que lhe parecesse, nada dissesse, apenas escutasse o que se iria passar nos minutos seguintes. Coloquei o telemóvel no bolso do casaco e entrei na casa de banho.
As medidas tinham sido tomadas de antemão, muito antes de chegarmos ao restaurante. Patrícia tirava objectos de um saco de viagem colocado debaixo do lavatório. Ela parecia estar com pressa, colocou-me ao corrente da situação, só então. A iluminação seria cortada, as portas automáticas baixadas e uma bomba de gás seria lançada como engodo no curto espaço interior do restaurante. O efeito anestésico do gás dar-nos-ia tempo para transportarmos aquelas cinco pessoas para uma carrinha que aguardava nas traseiras e prosseguir para a segunda etapa do seu plano maquiavélico.
Queria impedir a Patrícia de colocar o plano em prática, mas estava parco em ideias, não havia maneira simpática de a deter naquele momento sem levantar a mínima suspeita da minha consciência pesada.
Calma, conta-me ao menos o que eles fizeram. Porque razão vão eles morrer?
Preciso de saber, depois ajudo-te no que quiseres. – insurgi-me.
Ela parecia não se interessar pelas minhas dúvidas. Peguei nos seus braços e lancei-a contra a parede, num gesto de redenção, beijei os seus lábios. A bela rapariga não reagiu da forma como esperava, retribuiu o beijo e numa explosão de desejo carnal, mordeu-me o lábio, afastando-me para o lado.
Logo! Agora temos um jogo para terminar. – dizia ela, ofegante.
Continuava a remexer no saco de viagem
Por favor, preciso mesmo de saber. – insisti.
As palavras custavam a ser arrancadas, mas acabou por ceder vendo a minha passividade diante da porta da casa de banho. Estava impaciente, queria despachar aquilo de uma vez por todas.
Eles fazem parte do projecto Niemitz.
Fiquei sem perceber muito mais, mas ela nada mais disse. A sua paciência para com o meu comportamento nada profissional parecia estar a esgotar-se, entregou-me bruscamente para as mãos uma máscara de gás e deu um sinal telefónico ao exterior para avançarem.
As luzes apagam-se, escutam-se alguns gritos no interior da sala de jantar, Patrícia agarra-me pelo braço e leva-me para lá. É lançada uma granada de gás, o efeito foi rapidamente assimilado pelos presentes, tosse, alguns vómitos e uma rápida perda de consciência foram os passos seguintes. Não havia tempo a perder, em menos de um minuto transportámos dali os cinco alvos.
A carrinha arrancou a toda a velocidade, uma Ford Transit com interior de carga atrás e apenas bancos na frente. Patrícia e o condutor seguiam na dianteira, eu tinha ficado atrás com os restantes cinco. A velocidade depressa regressou à de cruzeiro, a zona era populosa e não se poderiam arriscar a serem mandados para pela polícia. Eu também não poderia arriscar que desaparecêssemos do interior da civilização e nos refugiássemos nalgum recanto remoto. Ainda com o telemóvel no bolso, pedi ao Alexandre que nos seguisse.
Ainda falta muito? – gritei para os bancos da frente.
A carrinha era fechada entre habitáculos, não escutava nada do que a Patrícia e o condutor gritavam do outro lado. Pela janela a escuridão tomava conta da paisagem que caía sobre as árvores do Monsanto.
Estamos quase lá. – gritava a Patrícia do lado de lá.
Revistei as carteiras dos jovens capturados na expectativa de encontrar algo incriminatório ou simplesmente algo que me explicasse o teor de toda esta perseguição às suas vidas. Nada encontrei, nem remexendo nos objectos pessoais que cada um trazia no corpo, absolutamente nada. Havia apenas um única coisa que estas pessoas tinham em comum, eram todos estudantes na mesma faculdade, também a do Gonçalo.
Gonçalo, conheces algum projecto chamado Niemitz? – perguntei.
Claro que conheço, isso foi explorado na minha faculdade.
Pois, eu sei. Mas do que se trata?
É um software que descodifica qualquer sinal transmitido via satélite.
Então era aquela a razão de tanta confusão. Cátia e os seus amigos não eram nem de perto nem de longe os terroristas que me fizeram crer, eram simplesmente uns miúdos que tinham feito algo que certamente desagradara alguém importante, não poderia deixá-los morrer apenas por isso. Não poderia perder mais tempo, num acto desesperado, pedi-lhes que abalroassem a carrinha e nos fizessem sair para fora de estrada, seria a nossa única salvação ou morreríamos ao tentar. As encostas íngremes do Parque do Monsanto, as suas árvores junto à berma da estrada e o isolamento do local teriam de servir de fachada a uma fuga não planeada.
Está bem! Segura-te! - gritou o Alexandre do outro lado da linha.
Não tive tempo de pensar onde me abrigar, peguei no adormecido corpo da Cátia e aninhei-a nos meus braços. Escutei a aceleração potente de outro carro no exterior, aproximava-se com grande força pela traseira... O embate não se fez esperar! Os nossos corpos saltaram naquele furgão oco, o guinchar dos pneus no asfalto servia de sinfonia, os gritos na frente anunciavam uma dor alucinante que nos esperaria na encosta mais próxima.
A carrinha parou abruptamente, doía-me o corpo todo. Alguns amigos da Cátia sangravam, ela parecia-me bem. Uma das portas traseira da carrinha foi aberta, a outra parecia presa e toda retorcida. Do lado de fora, uma luz forte, alguns metros acima do nível onde me encontrava jogado, ofuscava-me a visão turva e perturbada pelo violento embate. Eram os faróis do meu carro, pelo menos ainda um, o outro parecia fundido.
O Alexandre e o Gonçalo forçaram a abertura do resto da porta, tiraram os cinco jovens, ainda adormecidos durante mais algumas horas pelo gás. Ajudaram-me a sair, coxeava da perna direita, segui-a uma dor nas costelas e a cabeça que queria rebentar. Fora isso, continuava vivo.
No banco da frente a realidade era mais sangrenta, Patrícia parecia-me apenas inconsciente, tinha alguns sinais vitais, apesar de ténues. O desconhecido condutor tivera uma sorte diferente, o seu corpo estava trespassado pelos ramos de uma árvore, a mesma que nos tinha amparado a queda numa qualquer encosta no Monsanto.
Os rapazes e a inofensiva Cátia estavam a salvo, amontoados no banco traseiro e na mala do meu amolgado carro. Não haveria tempo a perder, a qualquer momento poderia passar alguma pessoa. Apressei-os a fugirem e a irem a um Hospital. Que pedissem de imediato protecção policial, as suas vidas iria dar uma volta inesperada.
Alexandre continuava fora do carro, como se esperasse por mim.
Anda, não podes ficar aqui. – gritava ele.
Eu não poderia ir com eles, estaria a comprometer a minha vida se soubessem que tinha sido um dos responsáveis pela fuga de cinco alvos assinalados. Não seria apenas a minha vida ameaçada, também a de todos os que me rodeiam e que parecessem cúmplices aos olhos severos de quem procura respostas rápidas para soluções complicadas.
Fujam... Não sejam estúpidos, fujam! – insisti, exaltado.
O Alexandre tomou o volante do carro, estava a demorar uma eternidade para sair dali.
Que vais fazer quando perceberem que foste tu quem os salvou?
Não sabia como lhe responder, não tinha pensado tão longe, a única preocupação naquele momento seria salvar aquelas pobres vidas. Mas uma coisa seria certa, mesmo que fosse descoberto e morresse, levaria todos os que pudesse comigo.
Não me estragues o motor, voltarei para buscar o carro. – despedi-me, ironicamente.
Ele finalmente arrancou, tinha em mente que iriam conseguir safar-se. Não poderia estar sempre ali para os ajudar a viver, mas a esta madrugada sobreviveram, um novo dia iriam ver nascer. Saquei o telemóvel do bolso, por momento esquecera-me dele ali. Chamei uma ambulância e desci a encosta. Voltava à carrinha, Patrícia estava presa na porta do seu lado. Consegui que se desprendesse com algum esforço, as minhas forças esgotavam-se e a pancada sentida na cabeça durante o embate estava a inchar, ficava tonto e desnorteado. Arrastei a Patrícia para a proximidade da estrada e de um afastado candeeiro na berma. Não me sentia bem, agasalhei o seu corpo ensanguentado e encostei a sua cabeça no meu peito. Os segundos pareciam horas, a ajuda tardava em aparecer, senti-me adormecer, desconhecia o que estava para acontecer.